Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

O atentado


Descrição: demétrio magnoli
Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Escreve aos sábados.
O atentado
07/11/2015  02h00
Satélites americanos detectaram uma onda de calor proveniente do avião russo que desabou no Sinai. A informação é compatível tanto com a explosão de uma turbina quanto com a detonação de uma bomba. Na segunda hipótese, seríamos obrigados a admitir que o Estado Islâmico não mentiu ao reivindicar a autoria do atentado. Mas, de acordo com o MEC, enxergar nisso um motivo para singular indignação evidenciaria nosso preconceito ocidental contra os muçulmanos.
A mensagem está no Enem, em questão apoiada em texto do filósofo Slavoj Zizek que discute o "choque de civilizações". Zizek menciona a carta da filha de um piloto americano que operou no Afeganistão, na qual ela confessa admitir a morte de seu pai na trincheira da pátria. Então, ergue uma tese: "Quando o presidente Bush citou suas palavras, elas foram entendidas como manifestação 'normal' de patriotismo americano; vamos conduzir uma experiência mental simples e imaginar uma menina árabe maometana pateticamente lendo para as câmeras as mesmas palavras a respeito do pai que lutava pelo Talibã –não é necessário pensar muito sobre qual teria sido nossa reação". O argumento se conclui pela resposta "correta" do gabarito: "a situação imaginária proposta pelo autor explicita o desafio cultural do exercício da alteridade".
Zizek é um charlatão. A "menina maometana" de seu conto é uma afegã –e, portanto, não uma "árabe". Mas não é preciso saber distinguir o mundo árabe do mundo muçulmano para subir a escada da celebridade no palco da filosofia política radical. O filósofo aninhou-se na palha do Partido Comunista da Eslovênia até converter-se em tardio dissidente, em 1988, acompanhando a nova direção dos ventos. Depois, tornou-se um profeta do apocalipse do "sistema global capitalista", esculpindo uma miscelânea teórica inspirada em fragmentos de Hegel, Marx e Lacan. No âmago de seu pastiche, encontra-se a condenação implacável da democracia. EUA = Talibã: a equação zizekiana está no Enem, não como tese de um pensador extremista, mas como verdade que o candidato deve repetir.
Zizek é esperto. Sua filosofia pop rejeita explicitamente a objetividade factual e a consistência argumentativa, de modo que a horda de vigilantes zizekianos adquiriu o hábito de defender o mestre acusando os críticos de tirar suas palavras de contexto. Entretanto, nas passagens de glorificação da Revolução Cultural maoísta e do terror de Pol Pot no Camboja (que, porém, "não foi radical o suficiente") pulsa o Zizek autêntico. É essa figura que o Enem escolheu para indagar sobre o significado de "alteridade" –e para desfraldar uma bandeira.
Alteridade é a capacidade de reconhecer a nós mesmos no outro. O Enem poderia sugerir paralelos entre o amor que devotamos a nossos filhos e o amor de um beduíno aos dele, ou entre os fanatismos de fundamentalistas cristãos e islâmicos. Mas, endossando Zizek, fabricou uma equivalência entre o governo de uma nação democrática e um grupo jihadista tirânico. No lugar da condenação a crimes de guerra, cometidos também por democracias, igualou a guerra ao terror, o que é um truque clássico para "normalizar" o terror. De passagem, elevou o Talibã ao estatuto de representação dos muçulmanos (e, valha-me Alá, dos árabes!).
O Brasil não vai bem. Os nobres vereadores de Campinas emitiram uma nota de repúdio contra uma questão absolutamente apropriada do Enem que cita Simone de Beauvoir, mas não se ouviu um gemido sobre o panfleto zizekiano. Na questão "repudiada", os examinadores tomaram o cuidado pluralista de não adotar a tese da filósofa como verdade consagrada no gabarito –precisamente o que fizeram na outra.
Sem ilusões: não pedirei ao MEC que poupe o Enem da tara dos doutrinadores. Mas que tal, ao menos, retificar os constrangedores erros factuais embutidos nas cartilhas da doutrinação? 

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