Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 29 de março de 2013

Precisamos de um Denys Arcand para filmar as mazelas do Estado brasileiro


Precisamos de um Denys Arcand para filmar as mazelas do Estado brasileiro

O canadense Denys Arcand é uma figura bem difícil de encontrar: um esquerdista que tem autocrítica! Já assisti a dois filmes desse diretor, roteirista e produtor de cinema, ambos com um forte componente autobiográfico, conforme ele esclarece em suas entrevistas. As duas obras fazem uma reflexão sobre o mundo contemporâneo que, mesmo sem abrir mão de uma perspectiva crítica do capitalismo, é muito sincera, e até comovente, ao desnudar as inúmeras frustrações da esquerda intelectual, seja nos campos teórico, político, profissional e até pessoal. 

O primeiro filme é O declínio do império americano, de 1986, no qual Arcand mostra que o sucesso do capitalismo em combinar desenvolvimento econômico, liberdade política e distribuição de renda esvaziou as apostas revolucionárias de superação desse sistema, tanto as de corte marxista, quanto as afinadas com os movimentos de maio de 68 - especialmente a dita "revolução sexual". Já o segundo filme, intitulado As invasões bárbaras, avança cerca de vinte anos na vida dos personagens para mostrar que as esquerdas revolucionárias não podem usar a crise do Estado do Bem-Estar Social para bradar que tinham razão em alguma coisa. A obra retrata o fracasso estrondoso da política de nacionalização do sistema de saúde canadense, bem como a acomodação de intelectuais de esquerda em estruturas estatais ineficientes, para mostrar que essa crise nada tem a ver com o dito "neoliberalismo". Muito pelo contrário, as causas dos problemas exibidos na tela residem precisamente nos vícios do Estado que os liberais denunciam, a saber:
  • Falta de foco: para cada necessidade existe um programa de governo destinado a atendê-la e um órgão estatal para executar o programa, gerando ineficiência. No filme, há uma agência do governo para dar apoio aos universitários canadenses que estudam em Roma...
  • Irracionalidade na aplicação de recursos. O filme mostra pacientes que ficavam deitados em macas nos corredores do hospital por falta de quartos, enquanto uma ala inteira, à espera de reforma, permanecia sem uso.
  • Excesso de burocracia, diretamente ligada à irracionalidade.
  • Corrupção. O filme mostra que, para contornar a burocracia do hospital, é preciso subornar a administração.
  • Corporativismo dos sindicatos. Funcionários do hospital roubam objetos pessoais dos pacientes (como um notebook) e são protegidos pelo sindicato - ou seria "máfia"?
  • Fracasso na promoção da igualdade: canadense rico viaja para os EUA a fim de se tratar num bom hospital privado, enquanto a classe média (caso de professores universitários) tem de ficar no Canadá e amargar um serviço público de saúde digno de país de Terceiro Mundo.
Enquanto isso, aqui no Terceiro Mundo, intelectuais, políticos e sindicalistas atribuem a crise do welfare state ao "neoliberalismo", que é acusado de desviar recursos públicos da área social para políticas econômicas necessárias à reestruturação produtiva e à globalização da economia! Não é isso o que se lê em Milton Santos e Marilena Chaui, por exemplo? De outro lado, Denys Arcand, mesmo sem deixar de ler o mundo pelas lentes dos valores e ideias de esquerda, tem honestidade intelectual suficiente para não apelar para essa explicação tão simples quanto mentirosa. 

Nós temos um Denys Arcand na política - estou me referindo a Fernando Gabeira. Mas cadê o diretor de cinema que vai ter coragem de fazer um filme para expôr as entranhas do padrão brasileiro de welfare state e revelar as hipocrisias da nossa intelectualidade de esquerda? E um que não precise de recursos de empresas estatais para fazer o filme, é claro.

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