Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Febre e poesia: o cinema de Claudio Assis


Febre e poesia: o cinema de Claudio Assis

Caminhando pela contra-mão, Febre do Rato chega aos cinemas com política, críticas e poesia
18/07/2012

Cristiano Navarro,
da Redação


   
   
A praia, o mangue, o cemitério, a favela. Entre palafitas e
barracos, o poeta Zizo (Irandhir Santos) constrói um mundo
anárquico e delicado - Foto: Divulgação
Depois do premiados Amarelo Manga e Baixio das Bestas, a parceria cinematográfica entre Claudio Assis e Hilton Lacerda chega ao terceiro longa-metragem imprimindo a marca do que para muitos parece ser quase impossível: fazer cinema sem fazer concessões.
Sem aceitar fórmulas e imposições estéticas, a dupla conquistou seu espaço. “Nunca fiz concessão nenhuma. Só que as coisas não caem na nossa cabeça. Você tem que ir conquistando. Mas tem de conquistar com honestidade”, afirma Assis.
Em Febre do Rato, que tem novamente Assis na direção e Lacerda assinando o roteiro, surge a jornada de Zizo (personagem de Irandhir Santos), um poeta marginal que em meio a barracos e palafitas da cidade do Recife constrói um mundo anárquico e delicado.
Cercada de amores e desejos, a força de sua poesia cativa amigos e populares. E seduz as mulheres mais velhas, além de uma jovem musa (Eneida, vivida pela atriz Nanda Costa). Mas quando os versos ultrapassam os limites impostos ao seu universo, Zizo se depara com a previsível repressão de um estado violento e intolerante. “Não há mal maior, quando o mundo não precisa de amor”, protesta o poeta durante um desfile militar de sete de setembro enquanto é reprimido por forças policiais.

A febre
Febre do Rato é uma expressão pernambucana para algo considerado danado, a expressão refere-se à doença leptospirose que assolou a capital em tempos de cheia na década de 1970. Febre do Rato é também o nome do fanzine distribuído por Zizo.
Zizo faz da produção e sua distribuição dos fanzines e da poesia sua paixão, fé e militância. Fazer cinema sem fazer concessões não é fácil. Assim o enredo do filme serve de metáfora para a própria produção de Assis e Lacerda. No mesmo dia em que Febre do Rato foi lançado, 550 salas receberam também cópias para o lançamento do filme de Felipe Joffily, E aí, comeu?, produzido pela Globo Filmes.
“Não existe espaço para outro tipo de produção. Os caras da Globo acham que está errado falar bem do Febre do Rato. Porque eles querem medir qualidade por bilheteria. Mas para ver o filme, o público precisa ter acesso. Esses produtores acham que tem uma fórmula de sucesso. Que fórmula é essa? É a da babaquice? Da idiotice?”, critica Assis.
Amarelo Manga (de 2003) alcançou, só na cidade do Recife, um público de 27 mil pessoas. Dessas, 15 mil pessoas foram ao cinema em uma promoção organizada pelos produtores onde o ingresso custava um real. “Claro que as pessoas querem ver o filme, mas não cobrando de 20 a 30 reais o ingresso”, acrescenta o diretor.

Desvendando Zizos
A idéia do filme surgiu de uma conversa que Claudio Assis teve com o jornalista Chico Sá, de homenagear uma geração de poetas marginais pernambucanos. O nome de Zizo foi emprestado de um poeta recifense que fez parte desta geração. “Um filme não sobre o Zizo, mas um filme sobre essas pessoas e este núcleo de poetas”, conta Hilton.
Hilton conta que os poemas são um apanhado de coisas escritas para o filme e outras coisas pessoais que acabaram entrando no roteiro. “A ideia era beber na fonte destes poetas marginais. Principalmente Ericson Luna, que na vida real talvez tenha mais a ver com o personagem do que o próprio Zizo. Mas para escrever os poemas entra um pouco de Manoel Bandeira no lirismo e João Cabral de Melo Neto na questão estrutural. Sem deixar de lado o olhar anárquico e surrealista de Murilo Mendes. Mas a tentativa não é de fazer um simulacro destes poetas, e sim usá-los como base para construção do filme e personagem”, salienta Hilton.
Segundo o roteirista, o que lhe interessava na construção da narrativa era o conflito do espaço utópico do poeta com a sociedade. “Então a principal questão seria de que forma esse conflito poderia ser representado poeticamente”.
No momento mais forte deste conflito, a utopia do personagem Zizo ultrapassou a tela e entrou em choque com a polícia de Pernambuco. Em uma cena filmada na Rua da Aurora, no bairro da BoaVista, Centro do Recife, policiais chegaram a intervir de forma violenta a interpretação dos atores. Mesmo com a autorização prévia as filmagens foram interrompidas.
“O que o filme mostra é realidade. Não tem coisa mais cruel e violenta que reprimir um homem e uma mulher por estarem nus como se isso fosse uma crime ou uma agressão”. O fato foi explorado por programas policialescos de telejornais locais. “Então se você colocar pessoas peladas na televisão a qualquer hora tudo bem. Mas se você for fazer um filme, com tudo certo, combinado e tudo controlado, a polícia te reprime. Isso é muito doido, porque a televisão pode mostrar as pessoas apanhando da polícia, pode mostrar cadáver de gente morta pela polícia, que isso é normal. Essa é a expressão de uma sociedade medíocre. E a gente tem que lutar contra”.

Transformações
Em frente ao cemitério, enquanto um cortejo fúnebre passa, Zizo comenta com Pazinho (melhor amigo do poeta, interpretado Matheus Nachtergaele) sobre suas angústias e desesperanças.“As pessoas, Pazinho, ficam falando em mudança, futuro, mas não estão nem aí pras coisas que realmente estão mudando. Perderam a capacidade de es- pernear pras coisas mudarem. Desaprenderam”.
Em diversas cenas Febre do Rato chama, direta ou indiretamente, o espectador a um debate sobre o conservadorismo da sociedade brasileira. Para Assis, o país vive um momento de pasmaceira. “Tá tudo muito parado, tem que sacudir. Não sei se é porque o Lula ganhou. Mas cadê as greves, os operários e as mudanças? Daí aparece o Lula com o Maluf, e isso tem graça? E o filme diz isso. As pessoas esqueceram de se indignar, não querem mudar mais nada”, indigna-se o diretor.
Lacerda vai além, e enxerga que o momento é de uma onda reacionária. “No Brasil existe um pressuposto de argumentação política em que as pessoas podem se aliar a qualquer proposta para estabelecer um discurso de governabilidade e poder. O que pra mim é muito grave, a partir do momento em que você dá força e legitima esses grupos conservadores”.
O debate sobre liberdades cerceadas levantado pelo filme encontra ressonância em pautas importantes para sociedade. Na mesma semana de lançamento de Febre do Rato, projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o Brasil pode passar a ser, em pouco tempo, um país de evangélicos. Quase que simultaneamente, a bancada evangélica apresentou na Câmara dos Deputados o projeto para ‘cura da homossexualidade’ com atendimento pelo SUS. “Então, de certa forma você está entregando ou deixando a discussão de temas importantes como dos direitos dos homossexuais pra ultra-reacionários, parece estarmos esperando que UDR, a bancada evangélica e as forças conservadoras resolvam os assuntos por nós”, ilustra o roteirista.

Profundamente
Um detalhe revelado por Hilton ao Brasil de Fato é que em Febre do Rato existe uma piada escondida que aponta como o modo de comercializar a cultura no país. Durante a cena de São João, Zizo pergunta para Eneida se ela conhece um poema de Manoel Bandeira sobre São João e ela diz que não. Mas ele não fala o poema e pergunta se ela acha que um poema tem valor, se tem preço. Daí se inicia uma discussão sobre isso. “Hoje em dia você não pode colocar um poema de Manoel Bandeira em canto nenhum com o risco de você ter seu trabalho barrado, caso não pague o que cobram por direito autoral. É uma pena, porque esse é o tipo de coisa que faz com que Manuel Bandeira, que poderia ser muito popular, fique restrito a uma pequena parte da sociedade”.


À poesia
Zizo

A poesia doma a alma
Torna-se sumo à palma
E dorme conforme a pausa.

A poesia ruma à musa
Adorna-se rima, nos usa
E tarde confirma a causa.

Ah! Esta arte, toda parte
Cuja fuga é fogo, é marte
Quando o poeta vive e cria.

Ah! como fome, como vida
Nada-tudo é jogo, é tida:
Serena fonte livre e fria.


Epitáfio para um burocrata
Erickson Luna

Faz da gravata
a forca
a fina veste
é tua mortalha
e teu birô
o teu esquife

Do gabinete ao túmulo
vade retro burocrata

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