Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Sobre "Egoísmo racional: o individualismo de Ayn Rand"


Faz um tempo que estou para comentar o livro Egoísmo racional: o individualismo de Ayn Rand, do economista Rodrigo Constantino (Documenta Histórica, 2007). O autor faz um resumo introdutório da obra dessa novelista russa que se celebrizou pela defesa apaixonada de ideias liberais, mas, logo no início, adverte que o livro representa as ideias dele, "não necessariamente em total acordo com o que Ayn Rand pensaria". O problema é que Constantino não explica, ao longo do livro, quais passagens podem estar em desacordo parcial com Rand, de sorte que o leitor fica na dúvida se as concordâncias ou discordâncias que ele tiver em relação ao conteúdo se referem ao pensamento do autor ou das obras que ele resume e comenta. 


Isso, por outro lado, reforça o convite que Constantino faz à leitura das obras originais de Ayn Rand, que não podem ser substituídas por uma introdução. Além do mais, o principal é ter claro que esse livro traz uma contribuição relevante aos debates públicos por divulgar essas ideias liberais num país onde, à semelhança de toda a América Latina, confia-se no Estado, nunca no indivíduo.

Sobre o conteúdo, creio que a parte menos interessante são as primeiras 35 páginas, que trazem a fundamentação filosófica dos escritos de Rand. Ocorre que Ayn Rand não era uma filósofa, mas, como diz o próprio Constantino, uma novelista que buscou elaborar um pensamento filosófico que servisse de base para a construção de seus personagens heroicos. O resultado disso é que o seu "objetivismo" se vale de conceitos extremamente polêmicos dentro da filosofia, mas a autora, ao menos nessa síntese que Constantino nos apresenta, não parece ter efetuado uma revisão aprofundada da literatura pertinente ao assunto. 

Toda construção filosófica verdadeira é assim. Como poderia Kant ter formulado a sua teoria do conhecimento a não ser por meio de uma exaustiva discussão com os filósofos empiristas e racionalistas sobre os conceitos de espaço, tempo, razão e tantos outros, conforme lemos em sua Crítica da razão pura? Rand, porém, usa o conceito de razão para se contrapor ao pensamento que ela denomina "místico", o qual nega a existência da realidade objetiva e apela para verdades reveladas pela fé ou pelos sentimentos. No âmbito desse debate restrito, fica fácil concordar com ela, mas não é possível levar adiante qualquer discussão filosófica ou epistemológica aprofundada em se partindo da proposta "objetivista" de Rand, posto que ela não debateu os conceitos de que se utilizou com os filósofos que já haviam tratado antes de teoria do conhecimento, metafísica, e assim por diante. 

Nesse sentido, não surpreende que ela utilize conceitos de uma maneira que soa ingênua. Ela fala de realidade, mas essa noção não é útil para as ciências da natureza (só atrapalha, na verdade), e tem muito pouco uso para as ciências sociais. A epistemologia que ela propõe também se alinha indisfarçavelmente ao realismo filosófico, o qual supõe que, na observação, os conceitos se ajustam de fato aos objetos. Essa é uma tradição de pensamento que vai de Aristóteles até Augusto Comte, mas foi questionada já em Descartes, que inaugura o idealismo ao indagar até que ponto não são os objetos de conhecimento que se ajustam aos conceitos.

Por tudo isso, o livro de Constantino se torna mais interessante depois dessa exposição inicial sobre as considerações filosóficas de Ayn Rand. É quando ela afirma a busca pela felicidade individual como um valor central e arma suas críticas contra todos os inimigos do individualismo. Vemos então a inegável lucidez das críticas contundentes que essa escritora lançou contra o coletivismo em suas formas socialista, nacionalista e religiosa, bem como a pertinência de sua exposição a respeito das vantagens da economia de mercado e da democracia sobre todas as formas culturais e modelos políticos e econômicos que submetem os indivíduos ao arbítrio do Estado ou de grupos.

Em outro momento, farei novas considerações sobre essa segunda parte do livro. Por hora, quero apenas enfatizar que esse livro tem o mérito de fazer a divulgação de ideias que nunca tiveram muita força nos países latino-americanos, onde a direita e a esquerda sempre desconfiaram do indivíduo e idolatraram o Estado. Não é à toa que a história política do continente seja uma alternância de ditaduras baseadas em coletivismos de tipo nacionalista, à direita, e socialista, à esquerda.

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