Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Pretérito passado


Pretérito passado


Chegamos o fim da linha, ou seja, ao limite do que consideramos a Fortaleza de feição antiga. A primeira metade dos anos 70, por diversos fatores, representa o ponto de inflexão, a partir do qual, verificamos a metropolização de fato da capital cearense. Até esse momento, ainda podíamos identificar inúmeros aspetos na sua geografia urbana e costumes que nos remetiam à Fortaleza provinciana dos anos 30 ao pós-guerra. É óbvio, contudo, que essa não é uma divisão estanque entre a nova e a velha cidade, uma vez que muitos projetos que definem essa modernidade foram construídos nas décadas anteriores, assim como elementos desse provincianismo ainda subsistiriam depois dos anos 70 até os dias de hoje.

Cartão postal no qual vemos uma panorâmica da cidade no início dos anos 70 

Foi durante os anos 70 que o crescimento da cidade, que contava com mais de um milhão de habitantes, tornou-se realmente visível. Principalmente em termos de malha urbana e de verticalização do espaço formal, Fortaleza fazia jus à condição de metrópole e assumia sua primazia absoluta sobre o território cearense, seja pelo avançado processo de expansão urbana, seja pela enorme concentração demográfica. Este fato deve-se ao papel que exerce Fortaleza na contração das principais atividades administrativas, comerciais, industriais, portuárias, sociais e culturais do Estado.

A área de influência de Fortaleza, segundo o estudo do IBGE de 1972, possui 52 centros, abrangendo uma área superior a 400 mil quilômetros quadrados, com uma população total de aproximadamente sete milhões de habitantes. Compreende, assim, a metade norte dos Estados do Maranhão, Piauí e todo o Estado do Ceará.

O recém inaugurado Terminal Rodoviário Engenheiro João Tomé

Conduzido pela prefeitura e destituído de participação popular, Fortaleza passa-se a valorizar o planejamento urbano. Discute-se a transformação de Fortaleza em metrópole regional e de sua área envoltória em região metropolitana. A verticalização sofre impulso na área leste (Aldeota), transformando este setor no de maior pujança imobiliária da cidade.

Segundo o professor José Borzacchiello da Silva, “A busca de novos espaços pela burguesia que residia nas imediações da área central implicou em alterações marcantes na cidade e na supervalorização de alguns bairros, como a Aldeota, Meireles, Praia de Iracema, Papicu, Bairro de Fátima e outros. A Aldeota é, sem dúvida, o bairro mais valorizado da cidade por ser o preferido da burguesia e da alta classe média. Por isso, conta com o melhor atendimento de infra-estrutura de serviços urbanos, comércio e outros equipamentos. Durante os anos 1970, no início do processo de verticalização fora da área central, pequenos edifícios de apartamentos foram construídos na Aldeota. A construção de edifícios luxuosos, com apartamentos grandes, substituindo as grandes residências, deu-se a partir de um outro momento”.

Praia do Futuro na década de 70

É nos anos 70 que começa o processo de especulação imobiliária da Praia do Futuro. Lá, no entanto, a proliferação de grandes prédios como ocorreu na avenida Beira Mar jamais se consumou. O problema foi a constatação dos altíssimos índices de maresia na faixa de litoral que vai da Praia do Farol à foz do Rio Cocó, o que favorecia a corrosão das edificações locais, assim como dos bens materiais dos que habitam essa parte do litoral, resultando na desvalorização dos imóveis.

“Nesse período, segundo a pesquisadora Maria Clélia Lustosa Costa, com a expansão do sistema viário para o leste, ocorreu um acelerado processo de especulação imobiliária abrindo-se novos loteamentos, sem nenhuma fiscalização do Poder Municipal e sem nenhuma infraestrutura, construindo-se residências de alto padrão em lotes de grandes testadas. Além dos problemas sociais provocados pela especulação imobiliária, o que expulsa a população de menor renda para periferias distantes, surgiram novos problemas decorrentes da degradação ambiental gerada por aterros de lagoas e riachos e pelo desmonte e dunas”.

Vista da Beira Mar a partir das dunas do Mucuripe

Aparentemente sensíveis à carência de espaços públicos livres, os governantes constroem uma série de parques urbanos, ainda hoje referenciais para a cidade.

Até a criação formal da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), em 8 de junho de 1973 compreendendo os municípios de Fortaleza, Caucaia, Maranguape, Pacatuba e Aquiraz, o crescimento da cidade é visto como contingência de um esforço local para fugir do atraso e se desenvolver. A partir daí, a capital cearense se insere no cenário nacional como um grande centro regional, ainda que seu status esteja muito aquém das grandes metrópoles como Rio de Janeiro e São Paulo.

Praça José de Alencar no início dos anos 70

A criação do Distrito Industrial de Fortaleza, localizado em Maracanaú, município desmembrado de Maranguape, deu-se a partir de 1964, mas só entrou em funcionamento na década de 1970. A ausência de infraestrutura básica, transporte, abastecimento entre outros, freava até certo ponto a fixação da população no seu entorno. Mais tarde foram criadas as condições necessárias à fixação da população nas imediações do Distrito Industrial. A maior concentração industrial, entretanto, ainda está localizada na Zona Oeste da cidade de Fortaleza (área da Avenida Francisco Sá), onde se fixou maior percentual da população urbana, daí as maiores densidades.

Fortaleza ganha novos equipamentos urbanos como o Terminal Rodoviário Engenheiro João Tomé, o primeiro shopping Center, o Centro de Convenções, o Ginásio Paulo Sarasate e o Estádio Castelão, além de obras estruturantes como as avenidas Aguanhambi e Leste-Oeste. Mas todas essas obras não escondem o fato de que Fortaleza dividia-se em duas cidades, uma “leste-rica” e outra “oeste-pobre”. Já o Centro, esvaziado dos símbolos de poder, assiste ao início de seu declínio como área de efervescência cultural e comercial da cidade.

Avenida Aguanhambi logo após sua inauguração

Das 154 agências bancárias existentes no Estado, 51 estavam em Fortaleza, sendo 3 matrizes de bancos oficiais, e nada menos de 5 matrizes de bancos privados. A movimentação bancária estava concentrada em Fortaleza, onde se realizava a quase totalidade das operações de compensação de cheques (98% em 1975). A capital cearense também concentrava os meios de comunicação. Eram três canais de televisão, oito emissoras de rádio, sendo duas FM, e cindo jornais diários. Esse elevado grau de concentração agravava ainda mais as disparidades econômico-sociais em relação às demais áreas do Estado.

O aparato do governo estadual aloja-se em centro administrativo no bairro Cambeba. Novos equipamentos urbanos constroem-se ao longo de avenidas e anéis viários, prenunciando a ampliação da malha urbana e a polinucleação da cidade.

Vista da rua Guilherme Rocha a partir do cruzamento com a rua Major facundo

Uma nova rede de comércio diversificada começa a surgir nos bairros, o que torna o Centro da cidade muito menos atrativo. Foi, no caso de Fortaleza, a concentração inicial de residências nos bairros da Aldeota e do Montese que criou condições para a consolidação de uma infraestrutura de comércio e serviços voltada, em parte, para o atendimento da demanda de seus moradores. É a possibilidade de atendimento de suas necessidades materiais e imateriais fora do Centro de Fortaleza o motivo do abandono dessa área pelos segmentos das classes de maior poder aquisitivo da sociedade, tornando-se seus "novos usuários", basicamente, a população de baixa renda.

Pessoal do Ceará

No final dos anos 60, em tempos de ditadura e repressão, um grupo de artistas frequentava eventos culturais na Faculdade de Arquitetura da UFC e se encontrava regularmente no Bar do Anísio, na avenida Beira-Mar, em frente à praia do Mucuripe. Lá, quase todas as noites, até o dia amanhecer, eles produziam música, poesia, teatro, compartilhando sonhos e canções.

Estavam ali os pioneiros Augusto Pontes, Petrúcio Maia, Rodger Rogério, Fausto Nilo, Belchior, Ednardo, Fagner, Brandão, Teti, Yeda Estergilda, Gilmar de Carvalho, Ricardo Bezerra, Alba Paiva, Marli Vasconcelos, Tânia Araújo, Xica, Olga Paiva, Pepe, Cirino, Amelinha, Jorge Mello, Antônio Carlos, Cláudio Pereira, Sérgio Pinheiro, Wilson Ibiapina, Guto Benevides, Mino, e muitos outros de uma turma boa de mais de 80 nomes, atuando nas diversas formas de expressões artísticas.

Ednardo e seu fusca a caminho do Rio de Janeiro em 1972

No início dos anos 70 muitos deles deixaram o Ceará com destino ao Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Tudo o que pretendiam era mostrar sua música e conquistar um lugar ao sol. Ednardo, Fagner e Belchior, os principais compositores do grupo, começavam a trilhar o caminho que os levaria ao sucesso nas terras do sul. Surgiu assim, o grupo que é denominado na história de nossa canção popular, como "Pessoal do Ceará".

O marco inicial da produção desse grupo foi “Meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem - Pessoal do Ceará”, disco produzido pela gravadora Continental em 1973, contendo canções interpretadas por Ednardo, Rodger Rogério e Teti, artistas pouco conhecidos, mas que a partir daí, laçaram para o Brasil, a música e os compositores cearenses.

Ednardo, Teti e Rodger Rogério no lançamento do disco "Pessoal do Ceará", no Teatro da TV Record, São Paulo, em 1973

Na condição de líder do grupo, foi o compositor e cantor Ednardo quem melhor traduziu seu amor à Fortaleza. Segundo Pedro Rogério, ''’Terral’ e ‘Beira-Mar’ - ambas composições de Ednardo - duas das músicas que se destacaram no disco-marco Pessoal do Ceará, são verdadeiros hinos, composições de um assumido apaixonado que, como um filho que precisa provar a sinceridade de seus sentimentos, declara seu amor à cidade-mãe ao mesmo tempo em que, sentindo que já está maduro o bastante, deixa-se seduzir por outras mulheres, outras cidades, sem jamais se desvincular do útero materno”.

No ceará, essa geração de artistas, músicos, compositores e cantores, passados mais de 40 anos de seu surgimento, ainda não foi superada, seja na qualidade ou quantidade de sua produção artística.

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