Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 12 de março de 2021

PITADA CULTURAL ESQUECIDA

 PITADA CULTURAL ESQUECIDA


“Aos 12 anos botei mulher no meu poder. Já barquejava no Rio Jucu. Tinha meu dinheiro, fiz a casa de sopapo de barro e fomos morar lá. Os móveis? Tudo feito por mim, até o fogão. A geladeira não tinha, nem banheiro. A cozinha era no quintal, atapetada com bosta fresca de boi, e o fogão a lenha era branquinho, esfregado diariamente com batinga no pano molhado. O quartinho ficava no beijo do rio. A paisagem era bela: da serra ao longe se destacava, a oeste, o Mochuara; o rio Jucu fazia voltas contornando morros pequenos coroados com ruínas dos Jesuítas; no porto muitas canoas. O comércio de lenha, carvão, farinha, frutas, ervas e cana era intenso, com Vitória, Cariacica e Viana. O Barqueiro do Jucu tinha muito serviço naquele tempo, antes de as duas represas da Cesan inviabilizarem a navegação.


Só íamos para Vila Velha na Festa da Penha, padroeira das congadas. Nossa “estrada” era o rio Jucu, Canal dos Jesuítas e o rio Marinho. Eu morava no Zenza, perto de Jaguaruçu, quase na barra do Rio Jucu. A casa coberta de palha era pequena, mas agasalhou um grande amor. Era o fogo da juventude. Seria capaz de matar ou morrer por minha mulher. Tenho dó dos meninos de hoje que só conseguem casar depois dos 25 anos. As pessoas são diferentes, eu teria endoidado. Estou com 90 anos e ainda gosto de namorar. Será que foi o bom princípio bem jovem ou a carne seca que subtraia dos fardos que transportava na canoa e mastigava, enquanto navegava, que me deu esta disposição?


Prá cá do meio da minha vida enviuvei. Até arrumar uma segunda mulher fiquei zureta e, por um descuido, me colocaram o apelido de galo. Não achava ruim, era verdade.  


Quando mudei para minha casa, ainda vestia o camisolão das crianças. Casado, como todo mundo, passei a usar calça comprida. Só vesti camisolão novamente para ir à Barra do Jucu pedir a bênção ao padrinho. Não queria que ele soubesse que eu já tinha mulher em meu poder. Ele era um professor respeitado, só andava de terno, até dentro de casa. Sua mulher, antes muito ativa, estava quase cega e passava os dias ouvindo os passarinhos e apreciando a claridade, sentada numa cadeira de balanço virada para a janela. Cheguei, bati palmas e logo me mandaram entrar.  


Meu padrinho me fez sentar. Depois de uma prosa, eu disse que queria a sua licença e bênção para casar. Ele ficou feliz com a minha consideração, deu bons conselhos e pediu para tirar a pitada. Levantei o camisolão, que não tinha nada por baixo, e ele esfregou o polegar e o indicador na ponta do meu pinto. Cheirou e disse: “está bom, está maduro, já pode procriar. Agora, vai lá e dê uma pitada para a sua madrinha. ”


Esta história e outras, também curiosas, meu amigo contava com naturalidade para todos. Não havia conotação sexual. A tradição da pitada desapareceu com a mudança de costumes, fortemente acelerada com a chegada da televisão. Distância entre as pessoas virou sinal de respeito, e sexo, assunto acadêmico, mais para falar do que para fazer. Velhos maratimbas capixabas hão de lembrar-se da inocente pitada cultural e dizer: “meninos eu vi, eu dei". 


Tenho 73 anos, não sou do tempo de I-Juca-Pirama (Séc. XIX). Quando criança, em São Mateus e em Vila Velha dei pitada, para velhinhos e velhinhas, moradores antigos da região, que visitavam meus pais.


Kleber Galvêas, pintor. Tel. (27) 3244 7115 www.galveas.com  Publicado em fevereiro de 2003. Página 25 do livro “Identidade Capixaba”.  



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