CRIME E POLÍTICA CRIMINAL.
Edmar Santos nos brindou com uma
instigante reflexão sobre conceitos antigos e dominantes. O tema foi o crime e
a política criminal. Analisou o maximalismo penal, abordando a “prisão em
massa” em razão da “criminalização dos despossuídos” e o aumento da população
carcerária; as condições da vida nos cárceres, realmente transformados em
centros de recrutamento, aperfeiçoamente, comando, controle e coordenação do
crime.
O Direito Penal máximo encontra
receptividade junto a gente simples. Universidades, imprensa, juristas, judiciário
não são tão propensos ao modo draconiano de tratar o crime. Somos um dos raros
– senão o único país do mundo no qual uma condenação até quatro anos de prisão
não leva à reclusão, ensejando formas mais brandas de punição. Temos quatro
instâncias recursais ofertadas à defesa do réu e infinitos recursos. O
Judiciário é tolerante com recursos procrastinatórios. Temos prescrição da
pretensão punitiva e da pretensão executória da pena, com prazos mais exíguos
do que na maioria dos países. Temos visita íntima aos encarcerados (países mais
desenvolvidos não permitem contato direto entre condenados e visitantes). A
primariedade dos condenados é restabelecida cinco após o cumprimento da condenação.
Não temos pena de morte, perpétua, mutiladora nem infamante. Só temos sanção
restritiva de liberdade, pecuniária e restritiva de direitos. A execução da sanção
não pode passar de trinta anos. Temos progressão do regime de execução
submetida a critérios mais benevolentes do que no Direito britânico, japonês e
de tantos outros países desenvolvidos. Nada disso é Direito Penal draconiano.
Leis incriminadoras, encarceradoras,
majorando penas têm se multiplicado. A gravidade da sanção não é importante
para a dissuasão do crime. A certeza da aplicação da pena é que tem esse efeito,
bem o disse Edmar Santos. Temos, porém, uma parcela ínfima de crimes
esclarecidos e punidos. Logo, temos impunidade, não temos “prisão em massa”. Não
se prendem todos os suspeitos, acusados ou condenados, nem sequer a maioria
deles. Há milhares de mandados de prisão em aberto. Inúmeros criminosos
contumazes convivem livremente com a população.
Temos uma grande e crescente população
carcerária e, por força de velhos conceitos hegemônicos que precisam ser
repensados, como bem o disse Edmar Santos, não olhamos para a profunda e
abrupta revolução dos custumes. A perda de referências partilhadas, a
banalização dos mores, o desprestígio dos agentes tradicionais de controle social,
como pais, professores, clérigos e os mais velhos em geral deixou o Estado como
o único agente de controle das condutas antissociais. Logo, não é surpresa que
haja aumento da população carcerária. Mais condutas antissociais levam ao
crescimento do número de presos ou à impunidade. Temos as duas coisas. Uma
parcela da opinião pública, dos policiais, do Ministério Público e da
magistratura tende para o punitivismo em razão da elevada criminalidade.
As condições de vida nas penitenciárias
são calamitosas. Melhorar a situação dos apenados é uma reivindicação justa, mas
exige recursos. De onde tirá-los? Da educação, segurança pública, serviços de
saúde ou infraestrutura logística? A boa gestão dos presídos poderá melhorar a
situação. Aperfeiçoamentos na lei de execução penal poderiam contribuir para
impedir que as penitenciárias sejam centros de administração do crime.
A condição social dos apenados é posta,
no primoroso artigo de Edmar Santos, como própria dos excluídos, usando a
categoria classe social e econômica como unidade de análise. Acertadamente,
porém, propõe que remodelemos antigos conceitos. A categoria de análise “classe”
é uma das antigas concepções hegemônicas que precisam ser repensadas, conforme
sugere Edmar Sntos. A teoria de estratificação invocada por Edmar Santos,
inspirada em Karl Heirinch Marx (1818 – 1883) é dicotômica, divide a sociedade,
com toda a sua diversidade e complexidade, em apenas dois grupos: “despossuídos”
e “possuidores”, ou “exploradores” e “explorados”, “oprimidos” e “opressores”.
Cada um destes grupos seria internamente homogêneo. Despossuídos seriam um
conjunto de pessoas semelhantes no essencial, por força de suas condições
materiais. A inserção confessional, geracional, étnica, comportamental ou
cultural é considerada epifenominal.
Os integrantes de classes distintas
seriam diferentes no essencial. Não importa que o índice de suicidios,
orientação sexual, filiação confessional, dissolução conjugal, uso de drogas
lícita e ilícitas seja comum a ambas as classes. As condições materiais
determinam, sim, diferenças do que depende da capacidade aquisitiva. “Oprimidos”
e “opressores” usam drogas lícitas e ilícitas. Uns consomem drogas de menor
preço, outros as mais caras. Ambos têm a mesma diversidade de orientação sexual,
mas satisfazem-nas em lugares diferenciados pelo preço; praticam crimes, mas a
espécie de delitos varia conforme a oportunidade oferecida pela posição social.
Grandes empresários e políticos (opressores) fazem fraude em licitação. “Oprimidos”
assaltam a mão armada, ops, nem todos, em ambos os grupos. Esta é uma teoria de
estratificação social baseada na origem da renda (capital ou trabalho) e é
reducionista, como demonstrado.
Outra teoria das classes, inspirada em
Karl Emil Maximilian Weber (1856 – 1920), considera a quantidade de renda como
critério de distinção das classes. Assim não teríamos apenas duas classes, mas
uma segmentação do tipo A, B, C, D e E. Esta reconhece que as possibilidades
financeiras determinam condições de vida material, sem atribuir a orientação
sexual, a dissolução conjugal, o uso de drogas, as práticas delitivas, o índice
de suicídio ou as ideias políticas às classes. Escapa do reducionismo e é a
teoria usada nas pesquisas eleitorais, mercadológicas e etc. Afinal o dinheiro
vindo do capital ou do trabalho, quando nas mesmas quantidades, compra as
mesmas coisas. Um assalariado bem remunerado, como artistas, atletas e técnicos
desfrutam das mesmas benesses de quem tem ganhos de capital. A estratificação
pela origem da renda, dicotômica, separando “opressores” de “oprimidos” serve
para discurso de protesto. Não é usada nas pesquisas. A maioria dos presos é
pobre porque o tipo de crime que eles praticam é mais fácil de investigar e lhes
faltam bons defensores.
Edmar Santos tem razãoquando diz que
precisamos repensar os velhos conceitos hegemônicos. Acrescentemos: a começar
pela estratificação baseada na origem da renda, embora quem assim procede possa
tornar-se estigmatizado, receba rótulos pejorativos, perca a condição de membro
da inteligentsia e o status de superioridade moral de quem
diz “espelho meu, espelho meu, quem é mais generoso do eu, que defendo os
oprimidos”?
Não importa que o
“sistema explorador”, desde que foi itroduzido no mundo, seguindo a esteira da
modernidade, tenha aumentado os anos de escolaridade, os anos de vida, o
desenvolvmento da ciência e tecnologia, criado sistemas de assistência social,
expulsado o escravismo para o crime, dado proteção às minorias e melhorado
todos os indicadores de qualidade de vida.
Fortaleza, 21-1-19.
Rui Martinho Rodrigues.
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