O QUE FAZER?
Marcelo Mário de Melo
No calçadão do parque à beira do rio de água funda avistou uma cadeira de rodas com um velho sozinho ao sol deixado ali por algum cuidador descuidado ou que se afastara por qualquer razão. Olhou em volta e só uma pessoa passava distante. Aproximando-se viu e ouviu o velho balbuciar babando arfando a boca retorcida: “água, água, me dê um copo d’água!”. Chegando mais perto uma nuvem cinzenta envolveu aquela face num coice de memória de 50 anos.
Um turbilhão de ventos sangrentos de velhos tempos ecoando tortura e morte. Era ele mesmo. Madeira o torturador que seguia perseguia prendia espancava torturava despia bolinava estuprava mulheres presas. Madeira o assassino de tantos companheiros e amigos próximos Madeira que havia lhe torturado. Agora estava ali à sua frente abandonado indefeso pedindo água com olhos suplicantes.
A barragem da memória rompida transbordou a lembrança de muitas águas. A água que ele lhe jogava pelo nariz quando estava pendurado no pau de arara. A água das sessões de afogamento com sua cabeça repetidamente mergulhada num balde. A água que lhe atirava no corpo nas sessões de choque elétrico. A água para beber ausente por três dias depois de recolhido à cela e obrigado a engolir comida especialmente salgada. A água negada para um banho após dias e dias de sujeira dormindo no chão entre sangue urina e fezes.
Agora bem que poderia lhe dar a água que pedia. Bastava retirar o travo da cadeira e empurrá-la rio abaixo para ele se fartar nas águas naquele instante sem testemunha. Seria um castigo mais que merecido lhe dizia o ódio insurgente. Mas a ética de guerra ante o inimigo batido pesava no outro lado da gangorra. Não se atira num paraquedista em voo nem em um náufrago. Os feridos devem ser vistos como pacientes. Os mortos devem ser enterrados e identificados para informação às famílias. Não se tortura não maltrata não se humilha o inimigo preso. O movimento da gangorra indo e vindo invadia o tempo e lhe paralisava o gesto..
Que coisa estranha esse homem que de repente parou e ficou petrificado como uma estátua diante dessa cadeira de rodas! - exclamava e indagava ao vento uma mulher que ao longe varria a paisagem com um binóculo.
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