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Vicente Alencar

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Bolsa Família altera rotina de indígenas na região do Xingu - 04/09/2016 - Poder - Folha de S.Paulo

ENVIADO ESPECIAL AO PARQUE INDÍGENA DO XINGU E A CANARANA (MT)
04/09/2016 02h00 - Atualizado às 16h07
Nascida e criada no Xingu, Leiru Mehinaku entende pouco o português. Não
sabe ao certo a própria idade nem a dos quatro filhos, que cria sozinha. Em
2014, um ano após ingressar no programa Bolsa Família
<http://temas.folha.uol.com.br/boyhood-bolsa-familia/> , deixou sua aldeia e
se mudou para Canarana (a 607 km a leste de Cuiabá).
"Achei que fosse o suficiente. Mas, depois que me mudei aqui, vi que era
muito caro", disse, traduzida por um sobrinho, em conversa na casa de tijolo
aparente e três cômodos nos fundos de um bar. Um fogão velho de quatro bocas
é o único eletrodoméstico. Sobre a mesa, seis sacos de arroz, três garrafas
de óleo e dois pacotes de café.
"Quando morava na aldeia, não precisava de dinheiro. Aqui, fico um pouco com
dinheiro e acaba", disse Leiru. Apesar das dificuldades, ela pretende
continuar na cidade para que seus filhos "estudem e entendam melhor o
português do que eu". O sustento é assegurado principalmente pelo filho
adolescente, que trabalha numa borracharia -sua renda mensal do Bolsa
Família é de R$ 300.
Assim como Leiru e os filhos, quase metade da população indígena no
Brasilparticipa do principal programa social do país
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1810104-burocracia-prejudica-ace
sso-de-indios-do-ms-ao-bolsa-familia.shtml> . Só na Amazônia Legal, são
63.165 famílias, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social.
Implantados em terras indígenas de todas as regiões do país sem nenhuma
adaptação, o Bolsa Família -e outros benefícios com menor abrangência, como
a aposentadoria rural e o auxílio-maternidade-, vem provocando mudanças
profundas no modo de vida tradicional.
O principal motivo é que esses programas obrigam os beneficiários a
sedeslocar durante dias até a cidade
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/09/1810105-indios-do-bolsa-familia-
sao-enganados-por-lojas-e-lotericas.shtml> para sacar o dinheiro no caixa
eletrônico e realizar trâmites burocráticos. No Xingu, essa viagem dura até
20 dias; no alto rio Negro (AM), o deslocamento chega a três meses.
Durante nove dias, a reportagem da Folha conversou com famílias e lideranças
indígenas no Xingu e em Canarana, a principal cidade do entorno do parque.
Ali, com apoio da Funai (Fundação Nacional do Índio), o programa se
popularizou principalmente entre os anos de 2012 e 2013, por meio de
mutirões realizados nas aldeias.
"A Funai foi um órgão muito desprestigiado nos últimos governos, com um
orçamento sem possibilidade de fazer muitos projetos", afirma André
Villas-Bôas, secretário executivo do Instituto Socioambiental (ISA). "Em
vários lugares, se restringiu a criar condições para cadastrar e facilitar o
transporte dessas famílias para acessar esses programas."
Nas conversas, os xinguanos afirmam que o benefício ajuda a comprar produtos
do cotidiano, como facões e material de pesca. Por outro caso, relatam casos
de endividamento para pagar o transporte, mudanças mal planejadas para a
cidade, consumo excessivo de comida "do branco" e retenção ilegal de cartões
por comerciantes.
Editoria de Arte/Folhapress


"A família acaba gastando todo o dinheiro com frete, muito caro. Paga R$ 600
só de ida. Pra buscar [o benefício], acaba se endividando", afirma Marcelo
Kamayurá, 41, agente de saúde e liderança da aldeia Morená.
"Se perder o foco, a pessoa fica dez, 15 dias dependendo de uma carona.
Atrasa a roça, o serviço na aldeia."
Os obstáculos do Bolsa Família e de outros programas sociais não se
restringem ao Xingu, segundo o presidente interino da Funai
<http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/08/1802380-psc-tenta-emplacar-outro
-general-na-chefia-da-funai.shtml> , Artur Mendes. Ele diz que, apesar de o
programa financiar compras de produtos já incorporados, como sal e pilha, o
vínculo obrigatório com a cidade altera a rotina dos indígenas de
comunidades mais isoladas.
"Há um esvaziamento das aldeias e uma mudança de hábito, de vida, inclusive
afetando os mais velhos, porque isso também acontece na aposentadoria
[rural]", afirma Mendes.
Lalo de Almeida/ Folhapress
<http://arte.folha.uol.com.br/poder/2016/08/27/xingu/>

CLIQUE PARA VER GALERIA: Indígenas lutam Huka Huka na aldeia
Yawalapiti em Xingu (MT)
<http://arte.folha.uol.com.br/poder/2016/08/27/xingu/>
ALIMENTAÇÃO
Um dos impactos mais fortes da entrada do dinheiro dos programas sociais e
das visitas à cidade está na alimentação. No Xingu, o café açucarado pela
manhã, o refrigerante e outros produtos industrializados têm cada vez mais
penetração.
Há três décadas atuando no Xingu, o médico e professor da Unifesp
(Universidade Federal de SP) Douglas Rodrigues afirma que o Bolsa Família
tem um peso, ainda não medido, na aceleração desse processo, com efeitos
devastadores na saúde.
Em 1986, ninguém foi diagnosticado com hipertensão ou diabetes durante amplo
inquérito de saúde no Xingu do qual Rodrigues participou. Nos últimos anos,
essas doenças estão cada vez mais comuns por causa das mudanças na dieta.
"A comida que vem de fora não tem regra nem a nossa variedade. Eles acabam
usando de maneira completamente equivocada. Muito óleo, sal, açúcar", afirma
a antropóloga e médica da Unifesp Sofia Mendonça, mulher de Rodrigues e
também com larga experiência no Xingu.
Para Rodrigues, a implantação ativa do Bolsa Família em terras indígenas
"parte de uma visão equivocada do que é pobre": "Na medida em que a política
de demarcação de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda
gestão do governo Lula [2007-2010], sobram aos índios esses programas
assistencialistas, que drenam a sua população para as cidades e para o
mercado".
ADAPTAÇÃO
Para minimizar esses problemas, algumas aldeias criaram soluções coletivas.
Em uma comunidade da etnia waura, os cartões do Bolsa Família ficam com
estudantes que moram na cidade e são mantidos pela comunidade. Com isso, os
beneficiários não precisam ir à cidade no prazo máximo de 90 dias, depois do
qual o dinheiro fica indisponível.
As lideranças indígenas defendem que a solução não é eliminar a Bolsa
Família, mas fazer adaptações, como a implantação de pontos de saque em
locais estratégicos do Xingu ou criar programas específicos à realidade
local.
"Lá fora, a aplicação desse programa é pra tirar a família da miséria. Mas,
no nosso caso, temos a nossa alimentação: peixe, milho, mandioca. O
importante é fazer um programa de incentivo para continuarmos fazendo as
roças do nosso modo", afirma Kamayurá.
Liderança do Xingu e funcionário da Funai, Ianukula Kaiabi Suia, 38, afirma
que o dinheiro "é o transformador de tudo" e que não há volta atrás: "Os
povos indígenas estão cada vez mais inseridos nesse sistema".
"Mas, se o dinheiro é tão desequilibrador, existe uma ausência de conversa
mais aprofundada. Caso contrário, daqui a um tempo vamos ficar cada vez mais
egoístas. O costume de compartilhar a nossa comida e as nossas coisas com os
parentes talvez venha a desaparecer. É a minha preocupação."
Lalo de Almeida - 24.ago.2016/Folhapress
<http://arte.folha.uol.com.br/poder/2016/08/27/xingu/>

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