Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

segunda-feira, 30 de março de 2020

ULTRAPASSADO - RUI MARTINHO


ULTRAPASSADO



Sou do tempo em que um objeto perdido continuava pertencendo a quem o tivesse adquirido legalmente - e cabia a quem o encontrasse a obrigação moral de devolvê-lo. Tempos em que respeitar as Leis, a propriedade alheia, os direitos individuais, as normas de boa conduta, significava ser honesto, ser correto...Ser bom cidadão.

Eu venho de um tempo distante, em que as mulheres gostavam de ganhar flores e bombons.

No mundo do meu passado, eram os pais que criavam e educavam os próprios filhos - não as empregadas domésticas, não os professores, nem sempre preparados para tal fim... Naquele tempo, até se podia não ter instrução... Mas boas maneiras vinham do berço...!

Eu sou do tempo em que o título de Doutor era uma conquista intelectual – não financeira, não uma exigência embasada na vaidade.

Recordo os longínquos anos em que se valorizava um gesto educado. Termos mágicos como “muito obrigado!”, “desculpe-me!”, “dê-me licença!”, conferiam respeito a quem os empregasse. Cidadãos não pertencentes ao nosso convívio íntimo eram tratados por Senhor, por Senhora... E ninguém se sentia velho, nem inferiorizado com isso...! Senhorita, ao invés de “você ou tu...”, caía muito melhor. As roupas  usadas tinham, por objetivo, resguardar as partes íntimas - não salientá-las ou adorná-las. Ativava-se, com isso, a imaginação das pessoas - como acontecia nas antigas novelas de rádio.

Eu venho daqueles tempos em que era o homem que tinha de convencer a mulher a namorá-lo. Namorar sim, ao invés do descompromissado “ficar”.

Quão saudosa é aquela época em que velhice era sinônimo de sabedoria...! Que o fim da vida não era antecipado, só porque já não se podia mais carregar um saco de cimento.

Eu sou daqueles tempos em que a maior garantia que uma pessoa podia dar era o empenho da própria palavra. E valia muito...!



Ser amigo, naquele tempo, significava ser comprometido com os interesses e o bem-estar do outro. Sacrificava-se em prol de tal compromisso. Manobras de espertezas não faziam parte do leque de possibilidades em tais relacionamentos.

Naquela época, o trabalho enobrecia. Proporcionava satisfação social, orgulho e impunha respeito à sociedade. Pouco dinheiro e moral elevada compunham um par perfeito.

Ser pobre, nos velhos tempos, não significava viver na contravenção, na marginalidade, na desonestidade, nem ser um derrotado definitivo. Ser rico, também, não significava, obrigatoriamente, ser um aproveitador do desfavorecimento alheio...

Naquele tempo, eram os bandidos que ficavam atrás das grades – não o cidadão, como se vê nos dias atuais. Policial era inimigo declarado do desonesto, do contraventor; e era ele o caçador – não a caça. Polícia prendia, a Lei julgava, condenava e encarcerava. Por esse motivo, o crime não compensava.  Bandido não roubava no próprio bairro, com medo de ser reconhecido e denunciado.

Eu venho daqueles tempos em que o novo membro da família simplesmente “chegava”, trazido pela cegonha - não pela manipulação genética, qual um pacote encomendado. Filho, naqueles tempos, tinham, obrigatória e reconhecidamente, um pai, que tomava as decisões importantes. Hoje - meio deslocado - vivo a rejeitar a tão disseminada ditadura infantil.

Sou do tempo em que a moral prevalecia sobre o interesse pessoal, sobre a indecência, sobre a matreirice. Tempo em que o poder andar de cabeça erguida era o melhor negócio.

Sangra-me o coração só de pensar que a vida, nos dias de hoje, não vale mais um velho tostão...! Que de seres determinantes, passamos a singelos números de estatísticas.

Sinto-me perdido neste mundo, onde se morre, onde se mata... Até por uma simples cocada.

                                                                           

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