Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

quarta-feira, 24 de abril de 2019

JOSÉ MARIA MORAES Melodioso saxofonista, hábil cirurgião e excelente clínico – tudo isso num mineiro autêntico

JOSÉ MARIA MORAES
Melodioso saxofonista, hábil cirurgião e excelente clínico – tudo isso num mineiro autêntico
   
João Amílcar Salgado
O Zé Maria e eu estávamos batendo um papo, quando passa o Zeferino, professor de ginecologia. Ele gritou para o Zé: Eta Açucena!, aquilo ainda existe? O Zé ficou vermelhinho e gritou de volta: Aquilo ainda existe, sim, e é muito melhor que sua terra, que nem nome tem!  Foi assim que não mais esqueci o nome da cidade onde nasceu o José Maria Morais, inclusive por ser um bonito nome.  E até aparece na letra de um dos mais ternos boleros que este refinado médico extrai de seu saxofone.
Outra lembrança que trago do José foi quando o professor Santiago Americano Freire nos ensinava farmacologia aplicada à tireoide. Ele disse que nós mineiros éramos irremediavelmente marcados pela falta de iodo destas montanhas, daí a irritante calma dos mineiros, enquanto os cariocas, como ele, viviam do excesso de iodo, daí a inteligência e a vivacidade que ele trouxe do litoral. Ah! pra quê! o Zé Maria ficou uma fera, levantou-se, trepou nas tamancas e danou a protestar contra aquela provocação – enquanto nós estávamos achando graça naquela briga de um atrevido pseudo-inteligente contra um valente verdadeiro-inteligente. Este, a partir daí passou a ser taxado de o mais mineiro dos doutorandos de 1960. No final do bate-boca, falei bem alto para que o mestre ouvisse: Calma, Zé, estudos feitos nas melhores universidades mostram que o iodo é essencial à esperteza humana... e quanto mais iodo, mais malandragem...
Esse rompante de indignação vem do lado Menezes do Zé. Traço mendelianamente dominante, remonta aos Menezes fidalgos da Ibéria, tanto espanhola como lusa. Já a inclinação para cuidar dos outros e de todo o mundo - forte no Zé - está muito bem antecipada no boticário Deusdedit Menezes Morais, seu avô, que manipulou remédios providenciais, clinicou com carinho para pobres e ricos e dirigiu com desvelo a cidade vizinha de Joanésia. A pintora e escritora Nilza Lentz, esposa do Ernesto e prima do Zé Maria, zela, em textos oportunos e nostálgicos, para que a memória de Deusdedit, de sua esposa (a marcante Vó Biela) e dos demais familiares se perca. Eu, que sou de família de boticários dos dois lados, me fiz fã automático deste varão, que tanto honrou seu prenome - dado que foi por Deus a sua grei. 
De outro neto dele, o Esdras - talentoso discípulo de Guignard que conheci amigo do Jarbas Juarez - me fiz admirador, nos anos dourados. Depois de me ouvir tecendo loas a Xica da Silva, ele pintou desta para mim linda aquarela, que contemplo agora diante de mim. Só depois de seu falecimento eu soube que era o irmão boêmio da Nilza e primo de meu dileto colega Zé Maria. Todos são autênticos “viras-saias” apelido conveniente àqueles das obscuras paragens onde a lenda diz que para ali um órfão jurado de morte, mas salvo sob a saia da rainha lusa, veio sobreviver e se virar.
Sim, é verdade: Açucena e Joanésia surgiram dos mistérios e tropelias do Doce.  Este é o segredo de Minas: ser capaz de, de um passado genocida e devasso, apurar seres humanos do bem e da arte. Isso impõe aos herdeiros dessa gente a coragem para revelar a verdade histórica, como fez o historiador Vani de Freitas Medeiros. Logo no início de seu precioso livro (que me foi gentilmente cedido por Maria Morais, minha tia adotiva), intitulado  JOANÉSIA DUZENTOS ANOS DE HISTÓRIA (2008), não hesitou em transcrever, na íntegra, a espantosa Carta Régia de 13 de maio de 1808, assinada por João 6º e redigida pelo terrível Conde de Linhares, que ordena o extermínio dos insubmissos indígenas donos dessa região. Curiosamente esta data nunca é lembrada para nossos escolares, como sempre o é aquela outra, de mesmo dia e mês, de oitenta anos mais tarde, referente à lei assinada pela bisneta do mesmo rei.
Diz a desumana carta-régia: Sou servido, por estes e outros justos motivos que ora fazem suspender os efeitos de humanidade que com eles tinha mandado praticar, ordenar-vos, em primeiro lugar: que desde o momento em que receberdes esta minha carta régia deveis considerar  como principiada contra estes índios antropófagos uma guerra ofensiva, que continuareis sempre em todos os anos nas estações secas , e que não terá fim senão quando tiverdes a felicidade de vos assenhoreardes das suas habitações (...) de maneira tal que, movidos do justo terror (...) peçam a paz (...) sujeitando-se ao doce jugo (... de ) ser vassalos úteis (...). 
Essas terras situadas no adentro do mato-dentro afinal consolidaram uma subcultura da matriz mineira, de temperamento e costumes próprios, e ligados a esta até por parentescos inesperados, como é o caso do poeta Carlos Drummond de Andrade. Num poema ele relembra, sendo menino, OS TIOS E OS PRIMOS  que chegam de Joanésia com três cargueiros pejados de canastras e alforges ... batalhão invasor.  / Pisam duro, de botas,  / batem portas-trovão a toda hora, / soltam gargalhadas colossais / e comem, comem, comem aquele peito / de galinha, que é meu de antiga lei.  Finalmente os tios volumosos, os primos estrondeantes se despedem / num triturar de abraços, prometendo / voltar ano que vem. O pequeno Carlos, no entanto, quer é que um breve terremoto / afunde cavaleiros e cavalos / na descida da serra... ... Mas poupe aquela prima / bonita ... que deixou no lençol a dobra do seu corpo.
José Maria Morais formou-se e foi clinicar em Coronel Fabriciano, onde fez tudo certo. Pôs em prática a correta medicina que recebeu em período áureo, único, de nossa Faculdade. Naquela cidade constituiu bela família. Disputa com vários de nossa turma o título de mais versátil na prática não só clínica como cirúrgica, incluindo pediatria, ortopedia e obstetrícia. Aqueles de nós que se formaram capazes de prática abrangente devem ser distinguidos daqueles que de fato a exerceram ao longo de largo tempo. Pois o José Maria Morais a exerceu em Coronel Fabriciano, desde janeiro de 1961 até hoje, quase octogenário, e com tal sucesso que os fabricianenses o elegeram, com toda justiça, cidadão honorário. O hospital da Belgo-Mineira que o recebeu nos primeiros dias de recém-formado foi comprado em 1966 por ele e mais quatro colegas. Com verdadeiro trabalho em equipe vem beneficiando, por décadas, a comunidade da região. Quando formulei a proposta de uma equipe mínima destinada a cidades médias, estudei o esboço aproximado da mesma acontecido em várias cidades, como Cruzília, Nepomuceno, Campanha, Varginha, Fabriciano e Mineiros (GO) – havendo em quatro delas o envolvimento de colegas de minha turma. 
Ao longo desse caminho, não deixou de mitigar as tribulações próprias à vida de um profissonal-líder com intermezzos de acordes de seu sax e doutros recursos musicais que sei de seu domínio. Sim, ele tem a felicidade de fazer parte de uma família de músicos, desde longínquos ancestrais, sendo o avô e o pai clarinetistas. Um irmão, também médico, é guitarrista; um irmão dentista é violonista de sete cordas, enquanto um primo é cavaquinista. Todos eles, junto com o Zé saxofonista, formam o pitoresco e tradicional conjunto da cidade de Fabriciano denominado MUCHIBA’S BOYS, do qual o mais jovem acaba de aniversariar seus 64 anos. 
Fino observador dos seres humanos e por isso mesmo fino humorista, é como tal que hoje sabiamente substitui e exterioriza sua permanente, admirável e sempre lembrada capacidade para indignar-se contra os absurdos do mundo e da vida.

O autor é professor titular de Clínica Médica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e criador do Centro de Memória da Medicina de Minas Gerais. O texto é parte do livreto “OS GLORIOSOS 44 DE 55” (2010) comemorativo dos 50 anos de formatura da turma de 1960, de médicos pela UFMG. Em data posterior, o autor reencontrou dois primos inadvertidos do José Maria - queridos amigos. Um é o ex-aluno e também historiador José Maria Alvarenga Morais. O outro é o contemporâneo de Colegio Estadual, também historiador e brilhante matemático Eulâmpio Morais. Este e o autor são estudiosos da vida e obra do jurista-matemático Lydio Bandeira de Mello, ex-docente em Muzambinho. Ainda mais um estudo do autor é a ligação desses Morais com os bandeirantes Pedroso de Morais, inclusive a respectiva tendência para a música, partilhada por Vinícius de Morais.


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