A CONDIÇÃO HUMANA
O sonho de emancipação humana vive.
Criar uma sociedade apta a produzir um novo homem cuja sociabilidade supere os
problemas mais agudos da vida em sociedade é parte da imaginação política desde
de Platão (428/427 – 348/347), com “A República”, que a muitos entusiasma até
hoje. O pensador ateniense, desiludido, retratou-se da quimera na obra “As
leis”. Mas a lucidez é menos sedutora do que a fantasia.
A retratação é abandonada pelos que
divulgam obras dos pensadores. “As leis” suscitam uma reflexão fundamental,
apresentando “A república” como uma ordem social para anjos, não para homens.
Seria a condição humana um fator limitante das possibilidades de organização
social? Caso seja assim, a sociedade terá o demiúrgico de criar e um novo homem.
Hannah Arendt (1906 – 1975), na obra “A condição humana”, ressalta o labor, a
possibilidade de ação apta a modificar situações ao desenhar o perfil da nossa
condição. Modificar situações é capacidade pacificamente reconhecida como
atributo do Homo sapiens. A
retratação de Platão propõe o problema dos limites de tal capacidade, não a
negação de tal atributo.
Renê Nöel Theophile Girard (1923 –
2015), na obra “Do mimetismo a hominização”, discorrendo sobre a ruptura radical
do processo pelo qual nos fizemos humanos, ressalta o conflito mimético. Somos
o animal que imita e conflita com quem imita. Ser o outro, tomar o seu lugar
leva ao conflito, diz o pensador citado. Acrescente-se que a identidade
construída pelo mimetismo tem a função de suprir lacuna. O tubarão nasce para
ser um predador do seu meio. O homem nasce sem um perfil definido, podendo ser
muitas coisas. John Locke (1632 – 1704), na obra “Alguns pensamentos sobre
educação”, descreve a condição humana, ao nascer, como uma página em branco, na
qual se pode “escrever” coisas muito diferentes. A página em branco pode ser a
lacuna que o mimetismo preenche.
Mas seria a tal “página” totalmente em
branco? O interdito do incesto e o próprio conflito mimético parecem indicar
fatores típicos da continuidade superpostas as rupturas. Expressões faciais,
também conhecidas como máscaras de expressão, são observadas em crianças de
tenra idade, sorrindo, reagindo às expressões dos comunicantes, como algo já dado.
Haveria um núcleo mínimo, não histórico, constitutivo da natureza. As leis dos
antigos códigos, a despeito do isolamento geográfico, guardam grande semelhança
entre si. A longa duração é um fenômeno histórico sugestivo da existência de
algo estável, mais do que uma condição fortuita, uma natureza humana.
A literatura reúne ambiente, personagens
com seus atos ao lado dos fatos, compondo um enredo. Obras literárias
multisseculares, de povos de culturas diferentes, apresentam aspectos comuns
aos dramas contemporâneos. As mesmas paixões, medos ambições e conflitos, até
personalidades parecem atuais, passando por cima das diferentes formas de
organização social, ou distintos modos de produção, se preferem. Até “O
mal-estar na civilização”, de Sigmund Schlomo Freud (1856 – 1939), insatisfações
do convívio social são universais e atemporais. Sugerem a existência de uma
natureza humana.
A existência de uma
natureza humana é obstáculo ao projeto de reengenharia social e do homem. Sonhos
políticos são semelhantes aos mitos tradicionais, conforme Raoul Girardet (1917
– 2013), na obra “Mitos e mitologias políticas”. São mais primitivos do que
racionais. O impedimeto aludido frustra os nefelibatas e desgraça os seus
seguidores.
Fortaleza, 7/4/21.
Rui Martinho Rodrigues.
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