Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

PINTURA EM DESVANTAGEM

 PINTURA EM DESVANTAGEM

 

Nossos ancestrais de mais de 3 milhões de anos não se interessavam por arte. Viviam nas florestas da África saltando de galho em galho, como fazem alguns mamíferos.

Nossos retataravôs, os australopitecus, mudaram da floresta para o campo. Bípedes, empinaram e ampliaram seus horizontes. Passaram a enxergar mais longe e, com peculiar visão binocular (os dois olhos na frente, num mesmo plano da face, formando uma linha de base) assim, conseguiram avaliar distâncias, distinguindo a sucessão de planos. A existência de cones e bastonetes no olho humano nos possibilita perceber os diferentes comprimentos das ondas luminosas que determinam a identidade das cores, e suas nuances. Graças a esses atributos físicos, os humanos conhecem e aplicam as perspectivas na pintura: linear (desenho) e aérea (cor).

Cientistas que pesquisam o comportamento humano, em sua interação com o ambiente, afirmam que 80% da comunicação do nosso corpo com o mundo exterior é feita através da visão. É tal a eficiência desse aparelho que os outros sentidos se acomodam. Daí a surpresa agradável daquele que ficou cego, ao descobrir o potencial do tato, audição, olfato e paladar, na percepção do ambiente que o cerca.

Para quem enxerga bem, havendo uma fonte de luz, o que costuma bloquear a nossa visão, ao reduzir o campo a um plano, são paredes e muros que construímos.

O homem primitivo (Homo sapiens) quando se refugiou em cavernas, nos últimos 40 mil anos, esculpiu e pintou em suas paredes, interferindo no bloqueio arquitetônico da sua visão. Construindo casas, templos e até sepulturas, nos primórdios das civilizações, decorou as paredes, como revelam as descobertas arqueológicas (Satal Hüyük) de até 9 mil anos.

Nada é mais intimamente percebido pelo nosso ser, influenciando decisivamente nossa relação com o meio ambiente, do que a limitação de um dos sentidos. Especialmente o da visão, nossa “janela” mais ampla. Curiosamente, em se tratando de arte, a “janela” do ouvido, muito menor, parece merecer maior atenção das pessoas.

Embora a audição represente menos de 20% do nosso contato com o ambiente, as pessoas são muito criteriosas ao montar suas discotecas e na escolha dos equipamentos. Reprovam desafinados, ruídos, ecos e estilos com os quais não têm afinidade.

Com a pintura não é assim. Encontramos poucas pinturas de qualidade bem posicionadas e adequadamente iluminadas, mesmo em salas “elegantes” e salões oficiais.

A razão deste disparate se deve à ausência de tradição (a pintura chegou, de fato, ao ES em 1951); formação de público (aqui não há museus com coleções permanentes); desprezo do governo por preceitos constitucionais (Art. 215 e 216); despreparo da mídia (preconceito provinciano e formação deficiente) e à pretensão de muitos artistas.

Pintores, escultores e outros do gênero, que se nomeiam “artistas plásticos”, ao contrário daqueles que produzem para a audição, paladar, tato e olfato, ainda acreditam que se bastam e que a arte está na obra que produziram ou na sua execução (virtuosismo). Subestimam a relação com o público falando em “obra de arte”, quando o mais próprio seria “obra para arte”. O orgulho e a vaidade se sobrepondo à razão - desprezando a figura do observador - vão contra a natureza da arte, que semelhante à do amor, não é atributo pessoal, mas o tipo de relação entre pessoas.

A arte não acontece se não há público. Só se realiza havendo observador que se sensibilize, ao apreciar a peça criada e oferecida pelo artista, seja atual, contemporâneo, moderno, barroco, ou mais antigo. Se exibida, permanece "viva" e atuante, transcende a vida efêmera do autor.

Kleber Galveas, pintor. Tel. (27) 3244 7115 www.galveas.com  novembro/2008  

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