Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

A REVANCHE DO SAGRADO - Rui Matinho Rodrigues.


A REVANCHE DO SAGRADO
O Iluminismo desqualificava o sagrado. Uma razão unívoca, apta a oferecer todas as explicações, demonstrável até a saciedade era o arrimo da proposta de subsunção de tudo a uma lógica que aqui chamaremos analogicamente de “omnívora”. Os sucessos das ciências da natureza, exibindo previsões precisas, antecipando datas de eclipses e passagens de cometas, embasando gigantesco desenvolvimento tecnológico, encorajou o otimismo e a arrogância cientificista do iluminismo.
As ciências da cultura chegaram a copiar a física. Auguste Comte (1798 – 1857) é o exemplo clássico desta tendência. Paradoxalmente, porém, o pensador positivista, adiando a concretização do estado positivo (etapa evolutiva na qual chegaríamos ao domínio pleno da razão “omnívora”), recuou e transformou o positivismo na religião da humanidade. Comte era pacifista, internacionalista e ateu, mas fundou uma religião cujos cultos começavam com um hino de guerra, contrário ao pacifismo, que também era o hino nacional da França, oposto ao cosmopolitismo. A razão por ele defendida tão ardorosamente estava prenhe de contradições, apesar de não invocar a “senhora de costumes cognoscitivos fáceis”, como Lucio Colletti (1924 – 2001) denominava a dialética.
A pós-modernidade trouxe o que Leszec Kolakowski (1927 – 2009) reconheceu como a revanche do sagrado sobre o profano ou pós-secularização, para outros. A clareza das ideias requer a explicitação do sentido em que empregamos as palavras. Falar do sagrado, profano, secularização é falar de religião e do que dela se distingue. Thomas O’dea (1915 1974), ateu, foi feliz ao expressar o que seja religião, indo além da etimologia latina (religare), situando o fenômeno religioso como uma busca por superação (i) da finitude, (ii) da radicalidade e (iii) da totalidade. A pós-secularização deriva do reconhecimento das limitações da razão que se supunha “omnívora”, capaz de devorar todos os problemas e explicar tudo. Revelou-se, assim, a mera instrumentalidade da razão que Galileu (1564 – 1642) descreveu como esforço de explicação das relações entre coisas, sem nenhuma reflexão sobre o estatuto ôntico das mesmas, sem pretensão à ontologia, sem propor o dever ser, sem perquirir sobre o sentido dos fenômenos, tratando de juízos de fato, não de valor.
O desprezo pelo sagrado já não reina absoluto. Narrativas havidas como científicas estão cheias de proposições da esfera do dever ser, campo no qual o conhecimento não tem a consistência das ciências da natureza, não é capaz de fazer vaticínios tão precisos quanto os da Física. Utopias apresentadas como ciência foram reprovadas no exame da história entendida como fato, embora tenham resiliência no âmbito da História, que é o campo de estudo e da reflexão sobre os fatos.
A revanche do sagrado e o abalo das narrativas das ciências da cultura reintroduziram a temática religiosa na política. O acesso aos bens e serviços que imunizaram o proletariado contra o canto de sereia revolucionário. Os arautos da reengenharia da sociedade e do homem não esmorecem diante dos próprios fracassos. Embora lhes falte uma ciência exata, querem empreender uma reengenharia. Desprezam a volição do homem que pretendem transformar. Desclassificam toda resistência que encontram como ignorância ou maldade. A substituição do proletariado como massa de manobra se fez pela convocação dos que sofrem discriminações odiosas e dos que sentem mais agudamente o mal-estar em face dos limites impostos pela vida civilizada, conforme o famoso opúsculo de Freud (1856 – 1939). A luta revolucionária migrou para o campo da cultura. Buscando aparentar virtude, seguindo o conselho de Maquiavel (1469 – 1527) e a prática dos fariseus, a reengenharia social e antropológica desfralda bandeiras de defesa das minorias. Não vacila em agredir os conceitos da moral conservadora, desqualificando-os como preconceito, ignorância, fobia e fascismo, sem abrir mão, paradoxalmente, do relativismo cognitivo e axiológico e querendo implantar uma censura.
Atribuir ódio ao outro é a tendência de quem se enche de ódio em face da resistência ao projeto de dominação oculto sob o manto da solidariedade e da liberdade. O sofisma consiste em transferir o ônus da solidariedade para o Estado, cujo financiamento é atribuído a terceiros e propor a quimérica igualdade de ser, para o que precisa suprimir a liberdade de expressão e de agir. Entre os gregos havia a deusa da Bem-Aventurança ou da Mentira, para os seus críticos, que oferecia desfrute sem esforço. Hoje a deusa da Mentira propõe o mesmo, desqualificando a superação das dificuldades existenciais pela via do esforço como injustiça social. A revanche do sagrado se ergue contra o neofarisaísmo e desperta ódio dos novos gestores da moral.
Fortaleza,10 de outubro de 2018.
Rui Matinho Rodrigues.
Publicado no jornal on line focus.jor e no blog da ACLJ.

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