A
PÓS-RESPONSABILIDADE
Desfrutar
é o verbo dominante hoje. O dever caiu na hierarquia da axiologia atual, diz
Gilles Lipovetsky (1946 – vivo), na obra “A sociedade pós-moralista: o
crepúsculo do dever nos novos tempos democráticos”. A palavra “moralista”
sugere uma disfunção da moral tradicional, cujo declínio o autor descreve. E os
novos tempos são democráticos? Temos uma nova ética indolor? A intolerância de
uma nova ortodoxia, eivada de ressentimentos e mágoas está presente na agenda
política, nas teses acadêmicas, nas redes sociais, em toda parte. Lipovetsky
acertou quanto ao hedonismo e ao declínio do dever, não quanto a tempos
democráticos.
O
declínio do dever guarda relação com a banalização e a instabilidade dos valores.
Zygmunt Bauman (1925 – 2017) tratou deste fenômeno na obra “Modernidade
líquida”, aludindo a fluidez dos valores e práticas. Seria algo que sucedeu ao
que chamávamos modernidade ou pós-modernidade. Há quem ache que é um
aprofundamento do moderno, uma hipermodernidade. O moderno se identifica com a
secularização da cultura, que está presente na sociedade líquida, mas a
revanche do sagrado também está presente, conforme registro de Leszec Kolakowski
(1927 – 2009) em alguns de seus pronunciamentos.
O
advento da centralização do poder político e o absolutismo estimulados pelo
cientificismo iluminista, ao lado do naturalismo cosmocêntrico em sincretismo
com o antropocentrismo, além da secularização são marcas da modernidade. A
fluidez das referências e o relativismo da sociedade líquida são outra
realidade. Contrariar a biologia é exemplo de negação pós-moderna do
naturalismo. Não é hipermodernidade, é pós-modernidade.
A
ideia de um mundo líquido, dinâmico parece sugerir tolerância. Não obstante o
relativismo, a intolerância também se faz presente. A liberdade é seletiva. A
substituição da moralidade tradicional não é a aurora de um tempo de liberdade.
Introduz severa condenação aos “infelizes que não creem” na nova ortodoxia. Os
novos gestores da “moral” pós-moderna ou líquida se portam como severos
inquisidores do Santo Ofício, reedição do velho farisaísmo, condenam
severamente os transgressores do novo moralismo. Colocam fardos nos ombros do
povo, mas eles mesmos não movem um só dedo para movê-los (Mateus, 23;4). A estatização
da solidariedade é exemplo disso. Exime o seu proponente de amparar o
necessitado, transferindo a responsabilidade para o Estado financiado por quem
tem renda maior do que o arauto do distributivismo. Como anjos de luz anunciam
um novo tempo de tolerância, paz e harmonia. Mas estimulam o “ódio do bem”,
ressentimentos históricos e uma “tolerância” que quer impor uma mudança cultural.
Intelectuais ungidos,
conforme descritos por Thomas Sowell (1930 – vivo), na obra “Os intelectuais e
a sociedade”, falam em nome da secularização da cultura, mas são devotos das
religiões políticas que se expressam nos moldes descritos por Raoul Girardet
(1917 – 2013), na obra “Mitos e mitologias políticas”. A tolerância dos novos
gestores da moral só beneficia transgressores dos valores tradicionais. Anthony
Daniels (pseudônimo Theodore Dalrymple, 1949 – vivo), na obra “A faca entrou”
descreve o declínio da responsabilidade pessoal. Psiquiatra forense, relata
expressões dos criminosos, do tipo “a faca entrou”, como que sem uma mão que a
guiasse. Responsabilizar armas, estruturas sociais, econômicas, políticas e
culturais, excluindo a responsabilidade pessoal é a marca da modernidade
líquida, da pós-moralidade e da ascensão do neomoralismo que deplora o dever.
Fortaleza, 26/1/21.
Rui Martinho Rodrigues.
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