TEOCRACIA E DEMOCRACIA
Participação política é exercício da
cidadania. É um direito político. Independe da confissão religiosa, inclusive
das religiões civis, seculares ou políticas. Muito se fala em Estado laico e
teocracia ou eufemisticamente em governo religioso. É oportuno lembrar o
significado de Estado laico, religião oficial e teocracia, para relaciona-los
com democracia, liberdade de expressão, axiologia e ciência. Tantos aspectos
não cabem neste espaço. Apenas indicamos tópicos e fontes que tratam do assunto.
Teocracia é “governo exercido
diretamente por Deus” (Dicionário da FGV, verbete de J. M. Hernánden-Rubio
Cisneros), restando, no ocidente, o Vaticano, teocracia do tipo indireta,
exercida por representante da divindade. Acontece em sociedades culturalmente
homogêneas, com uma igreja com uma autoridade central absoluta, como as
teocracias islâmicas e as seculares do “centralismo democrático” (Vladmir
Ilyich Ulianov, Lênin, 1870 – 1924, na obra “O que fazer”) dirigidas por
religiões civis ou políticas, organizadas como partidos. No Brasil os cristãos se
dividem em numerosas igrejas. Só o catolicismo é dirigido por uma autoridade
central que já não é incontestável. A diversidade de doutrinas religiosas e da
sociedade afasta a “ameaça” de teocracia ou eufemisticamente governo religioso.
Evangélicos no Parlamento são heterogêneos e proporcionalmente menores do que a
parcela de evangélicos na população.
Teocracia orienta todos os assuntos. No
Brasil as igrejas opinam, em geral, sobre questões morais e reivindicam
liberdade de expressão, direito ao exercício da crítica neste campo. Reagem aos
agressores quando acusados de preconceito, ódio ou fobia, ao vilipêndio de
símbolos religiosos, sobretudo imagens dos católicos. Fala-se em agressividade
dos religiosos. Não se fala nas igrejas incendiadas no Chile, pelo “ódio do bem”.
Fossem cristãos incendiando partidos camuflados de igrejas haveria um
terremoto.
Religião oficial, como no Império, não
governa em nome de Deus, professa uma religião. No Reino Unido a rainha é chefe
da Igreja anglicana e ninguém duvida da democracia britânica. O Estado laico ou
secular é neutro em relação as diferentes igrejas para que todas tenham
liberdade. Não significa que os cidadãos devam abdicar de suas convicções
religiosas, nem submetê-las ao escrutínio do pensamento secular, conforme carta
de Thomas Jefferson (1743 – 1826) a uma associação de igrejas batistas, em
1802. Cidadãos podem votar em candidatos que defendam ideias afins às suas.
Parlamentares podem apresentar projetos e votar pelo estabelecimento de leis
que sejam compatíveis com os seus valores, sem ferir o Estado laico.
Em todo o mundo homicídio é crime e as
religiões o consideram pecado. Não vamos descriminalizar o homicídio só porque
os religiosos o classificam assim. A individualização das penas, que não passa
da pessoa do agente é tem ligação com a bíblica que diz: “cada um dará conta si
mesmo (...)”, (Carta de Paulo aos romanos, capítulo 14; 12). O ocidente, que deu
ao mundo a democracia, o habeas corpus e as garantias individuais, é uma mistura
sincrética do pragmatismo romano, presente no Direito e na engenharia, com o
pensamento teorético dos gregos e a tradição judaica. O monoteísmo hebreu
guarda semelhança com o pensamento grego. Difere por ter como premissa a
revelação. Mas na análise da revelação usa a mesma lógica que Aristóteles (385/3844
a.C. – 322 a.C.) codificou (não inventou). Tomás de Aquino (1225 – 1274)
valeu-se do “motor imóvel” do estagirita para demonstrar a necessidade lógica
de Deus. A unidade do cosmo, na origem, faz a ponte entre as tradições grega e
hebraica. Não há uma ruptura completa entre o pensamento secular e o teológico.
As pautas dos cristãos atualmente
consistem na busca da liberdade de expressão e de consciência, direito de criticar
no campo axiológico, manifestando valores da moral tradicional. Confundi-los
com preconceito, que é juízo formulado antes de conhecer o objeto, é erro ou sofisma.
As referências teóricas dos religiosos incluem liberais ateus (“direita”
ateia), como Karl Raymond Popper (1902 – 1994) e Friedrich August Hayek (1899 –
1992), desmentindo a acusação de intolerância. Popper representa uma orientação
epistemológica com repercussão geral no conhecimento. Hayek expressa um
pensamento econômico, histórico, antropológico e epistemológico com pontos de
contato com o ateísmo. A diversidade dos nossos cristãos não tem a ortodoxia
das teocracias, inclusive das aparentemente seculares.
Os que invocam o nome da ciência não
respeitam os procedimentos científicos. A beleza e a riqueza incomparáveis da
poesia, que tanta contribuição oferece no campo da subjetividade, da arte e dos
sentimentos não pode legitimar estudos econômicos, jurídicos ou históricos.
Nestes a licença poética é sinal de despreparo ou técnica de manipulação, como
chorar a pobreza comparada crescente, esquecendo a redução secular da pobreza
objetiva. Viva a poesia como arte. Viva o rigor epistemológico na ciência.
A inconformidade em face da alternância
dos grupos distintos no poder é antidemocrática. Tal inconformidade trata a moral
tradicional como fobia. Mas não considera fobia, nem intolerância ou ódio
incendiar igrejas ou o alarmismo com a suposta iminência de uma teocracia,
enquanto aplaude ou silencia teocracias seculares ditatoriais. Descrevem o processo
civilizatório começando com um paraíso perdido por um pecado original
(apropriação dos meios de produção), seguido da promessa messiânica de um
salvador (o proletariado), mandado por uma divindade (a História com o seu
determinismo), e a volta ao paraíso (sociedade justa e sem classes), explicado
por autores com status de profeta,
divulgado por intelectuais atuando como teólogos, apoiados pela catequese de
professores, jornalistas e outros ativistas ao modo do clero missionário.
A afinidade do
pensamento político com os mitos foi descrita, de modo comparável ao destas
linhas, por Raoul Girardet (1917 – 2013). Não é uma denúncia de plágio. É a
identificação da pertinência ao mesmo gênero. Michael Oakeshott (1901 – 1990)
comparou a promessa de chegar ao céu pelos próprios meios com a Torre de Babel.
Raymond Aron (1905 – 1983) falou no “ópio dos intelectuais”, na obra com este
nome, tratando ainda, na obra “De uma sagrada família a outra”, da sacralidade secular
da filosofia de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831) e seguidores,
passando a sacralização do pensamento de Karl Heirinch Marx (1818 – 1883).
Thomas O’Dea (datas de nascimento e morte incógnitas), na obra “Sociologia da
Religião”, define o fenômeno religioso como a reunião da radicalidade, com a
totalidade e a transcendência. Podemos acrescentar que os três fatores estão
presentes nas religiões políticas. Apropriação da epistemologia de Hegel, para
a qual o racional é real, levou ao dogmatismo e a hierarquia de consciências
como verdadeira e falsa, ao modo da revelação, conforme Leandro Augusto Marques
Coelho Konder (1936 – 2014), na obra “A derrota da dialética”. Estados
teocráticos supostamente seculares, constituídos desde o século XX, com raízes
na Revolução Francesa, têm verossimilhança maior com o propalado governo
religioso apocalíptico do que o protagonismo dos cristãos.
Fortaleza, 23/10/20.
Rui Martinho Rodrigues.
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