REDUCIONISMOS
E MANIQUEÍSMOS
O prezado amigo Reginaldo Vasconcelos e
o talentoso causídico Betoven Oliveira, brilhantes e cultos integrantes das
letras cearenses, prestigiaram os meus escritos dando atenção ao que penso.
Lisonjeado, volto ao tema da dicotomia direita e esquerda. Trata-se de uma
visão consagrada internacionalmente. Agentes políticos pensam e agem em
conformidade com ela. Tem o amparo de grandes autores.
A divisão dicotômica, do ponto de vista
ontológico, só aceita duas identidades, a despeito da variedade do pensamento e
práticas políticas. Trata-se de uma realidade “evidente” como o geocentrismo. É
observável tanto quanto se pode observar o sol girando em torno da terra. Não
lhe falta o amparo do argumento de autoridade, da tradição e da observação
direta. Tem a sedução das coisas simples. Facilita a comunicação. Atende a
comunicação adequada ao jornalista e a política.
A divisão entre gregos e bárbaros era
dicotômica. Ignorava a diversidade cultural entre egípcios, persas, fenícios ou
outros povos igualmente classificados como bárbaros. Hebreus e gentios;
muçulmanos e infiéis; cristãos e pagãos são reducionismos de sucesso nos
respectivos meios. Empobrecem a análise. Desconsideram aspectos relevantes da
realidade e tendem ao maniqueísmo, que separa o bem e o mal. É uma delícia para
os manipuladores e para o proselitismo. Satanizar o outro e canonizar os seus
massageia o ego e é uma poderosa arma. Cria ortodoxias, legitima censura e
alimenta conflitos. A atual exacerbação de ânimos em parte resulta do
maniqueísmo direita e esquerda. Paradigmas, em geral, tendem a causar cegueira,
são incomunicáveis e estimulam o viés de confirmação dos nossos equívocos.
Paradigmas políticos são mais apaixonantes e fortalecem essas tendências.
Simplificar pode ser um esforço didático
do professor e do escritor. Até quem percebe e proclama que nenhum aspecto de
nenhuma doutrina é exclusivo da direita ou da esquerda, como Norberto Bobbio
(1909 – 2004), na obra “Direita e esquerda”, reconhece, mas admite a existência
dos dois blocos na prática política, depois de exaurir uma lista de ideias
políticas que aparentemente poderiam ser unicamente de um dos lados.
Mas, antes de reconhecer os dois grupos,
afasta as diferenças ontológicas entre eles. Elimina a falácia ad hominem, que glosa um argumento
desqualificando quem o apresenta, sem examinar o mérito. Não aceita redarguir
uma proposição alegando que “é argumento de esquerda ou da direita”. Afasta,
assim, argumentos que dizem: a esquerda é a favor dos pobres e a direita é
contra; a direita é favor da liberdade e a esquerda contra; a esquerda é favor
da igualdade e a direita contra. Típicas falácias ad hominem, (o outro é do mal, nós somos do bem). É preciso dizer
como a proposta do outro fracassa. É também um argumento circular: uma ideia é boa
por ser nossa. A crítica deveria demonstrar os resultados favoráveis do que defende
e que os outros estão errados conforme a interpretação dos fatos.
Tabelar preço, câmbio sobrevalorizado, protecionismo
alfandegário, política de juros podem representar erro ou acerto. Mas isso deve
ser demonstrado. Desqualificar por ser de esquerda ou direita é, como dito,
falácia ad hominem. Assim ficam
afastados os critérios de demarcação segundo os quais um lado defende as minorias
e o outro é contra; defende a justiça e o outro as injustiças. O diálogo só é
possível quando se admite a boa-fé das partes. Dizer que um lado defende
injustiças é uma maneira de ganhar um debate sem precisar demonstrar que está
certo. Como defender assalariados, indústria nacional, programa educacional ou
grupos identitários? A proposta “do bem” pode causar o mal. Cabe apresentar
fatos e analisá-los.
Haverá uma maneira de defender os pontos
retrocitados que seja típica da esquerda e direita? Não. O partido comunista
Chinês e o do Vietnã são de “esquerda”. Aceitam propriedade e capitais
privados, produção para o mercado, prioridade para exportações e duras
condições de trabalho acabam favorecendo os trabalhadores. Tiraram 600 milhões da
miséria na China. Adotaram alguns aspectos da economia de mercado como um
caminho que favorece os trabalhadores.
Peron e Vargas eram anticomunistas (direitistas).
Adotaram protecionismo alfandegário, tabelamento de preços e salários,
distributivismo fiscal, legislação trabalhista protetora dos assalariados. Há
quem ache que eles obtiveram sucesso. Há quem ache que fracassaram.
Independentemente do juízo formulado sobre acerto ou erro das políticas
aludidas, era “direitistas” e adotaram políticas de “esquerda”. Hoje os
herdeiros de Vargas e de Peron são “esquerdistas”, sem mudar uma vírgula de
suas concepções “direitistas”. Fascismo e socialismo são, respectivamente,
direita e esquerda? Ambos promovem o fortalecimento de Estado em face da
sociedade. Ambos defendem a anterioridade da sociedade em face do indivíduo,
como se nós nos associássemos, por exemplo, para criar um comércio, com o
objetivo de servir ao comércio, não a nós mesmos. Ambos praticam o culto à
personalidade dos seus líderes. Ambos são movimentos de massa. Ambos consideram
o conflito e a violência como o motor da História. Ambos adotam a ética
teleológica para a qual os fins justificam os meios. Ambos têm espírito
messiânico, dispondo-se a salvar o proletariado ou a civilização. Ambos são
“esquerda”? Então fica difícil definir direita. Um é esquerda e o outro é
direita? Então é preciso arranjar uma diferença suficientemente forte para
distinguir direita e esquerda.
O problema da identidade das teses destrói
a divisão dicotômica. Nacionalismo era direita. O Movimento Comunista
Internacional, ao tempo em que era comandado pela Internacional Socialista
(leia-se Moscou), adotou o nacionalismo das lutas pela descolonização da África
e da Ásia. No início da globalização a esquerda se opunha a ela. Direita era a
favor. Favorecia o primeiro mundo em detrimento dos países periféricos,
alegavam as esquerdas. Asiáticos se industrializaram e melhoraram de vida. A desindrustrialização
prejudicou os países cêntricos. Causou reação nos EUA. A direita, nos EUA, é
contra a globalização. Na China a esquerda é a favor. Antecipamos o bem e o
mal? Políticas não têm identidade. Quem mais estatizou a economia no Brasil foi
o governo Geisel, que salvou o regime comunista de Angola enviando suprimento durante
a guerra civil naquele país. Quem aproximou os EUA da China foi o governo
Nixon. As relações internacionais não são de direita nem esquerda. O jogo é de
conveniência. Salvar o maniqueísmo político só com a dialética, que Lucio
Colletti (1924 – 2001) considerava uma senhora de costumes cognoscitivos
fáceis.
Culto à personalidade de líderes, estado
forte, empirismo, racionalismo, internacionalismo, nacionalismo, violência,
paternalismo, cientificismo, messianismo, partidos militarizados e religiosidade
são traços que podem ser encontrados em ambos os lados da dicotomia. Exemplo
interessante é a ideia conservadora de que o homem não se pertence, por ser da
Igreja, pátria e família (direita?). Revolucionários entendem que o homem
pertence ao partido e à classe social, não se pertencendo (esquerda?). Conservadores
são “direita”. Acham que o homem não se pertence. Liberais acham que o homem se
pertence. Direita? Um é moderado e o outro extremado, mas têm a mesma essência?
Não. Anarcocapitalistas ontologicamente não são iguais aos liberais e conservadores.
Todos são direita? Não podemos coloca-los no mesmo saco. Direita e esquerda são
realidades tão evidentes quanto o sol girando em torno da terra.
Fortaleza, 16/9/20.
Rui
Martinho Rodrigues.
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