O SAGRADO E O PROFANO
“Agora eu era o rei/era o bedel e era também juiz.../ E pela minha lei a gente era obrigado a ser feliz.../ No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido.”
(João e Maria – Chico Buarque-1977).
O sagrado deixa aflorar novos significados sem os quais seria impossível viver. O sagrado não agrega o profano, mas restabelece o sentido exato do profano e da vida. Chico Buarque antecipa na letra da canção João e Maria uma quase paráfrase do sagrado e profano, o ser obrigado(!!) a... ser feliz. Ou não nascer(!!) ... no tempo da maldade...
Essas reflexões fugidias me chegam agora por conta do necessário confronto entre a altura sagrada da Encíclica Fratelli Tutti e a pequenez profana de acontecimentos vis como:
1- A sentença do Ministro Marco Aurélio ao soltar e deixar evadir-se um super traficante de drogas, medida logo abortada pela intervenção do a cada dia mais aclamado Ministro Fux, que já colhe consagração pública ao presidir o STF, até por projetar sua voz do Bem em defesa da Lava-Jato, para alívio dos brasileiros contrários à corrupção.
2- A burocracia e gestão criminosa do Ministro do Meio Ambiente, de quem se sabe agora ter postergado por quatro meses o envio de brigadistas do IBAMA, o que invalidou a proteção de territórios indígenas e ateou chamas ao Cerrado. Recorde-se que o crime de omissão é tanto mais grave quando não faltaram avisos de que as condições climáticas de 2020 seriam as piores em mais de meio século.
3- A se antepor à tal bastardia realço a grandeza da despedida do Ministro Celso de Mello, honrando em todo discurso o título de “homem superior a própria raça”.
4- Isso se confronta à decepção da indicação de seu substituto, Kassio Nunes, carregado pelas mãos do Presidente à festetas pra lá de profanas ao fim de semana. Além, o pior, de ter emudecido sobre acusações de turbinar o currículo com inverdades mais cabeludas que às daquele Datelli, de meteórica e triste memória.
Volto-me agora para o sagrado. Saio do pântano dos horrores para a luz beatífica de Francisco, que celebra a primeira homenagem papal a um poeta brasileiro, nosso Vinicius de Moraes, bem como ao ritmo do seu povo, o Samba, e aos seus fundadores.
Em meio a um forte discurso de apelo social e político a nova Encíclica Franciscana aborda robusta citação a Vinicius (1913-1980). No sexto capítulo do texto, dedicado ao diálogo e à amizade social, Francisco menciona uma passagem da letra da música Samba da Benção, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”.
A flecha foi certeira em todos os níveis, a começar pela sacralidade do título do samba, o da Benção. Não creio que na música argentina haja algo próximo a Tango da Benção. Em seguida Francisco escreve que várias vezes já convidou os fiéis a fazer crescer “uma cultura do encontro que supere a dialética de colocar um contra o outro”. Seria um estilo de vida que tende a formar aquele poliedro de muitas faces, muitos lados, mas todos a compor uma unidade rica de matizes, porque o todo é superior a uma parte, diz o Papa com sabedoria.
A necessidade de diálogo é um dos temas de essência da terceira Encíclica assinada pelo Papa em quase 8 anos de pontificado.
As ideias políticas de Francisco não são novas. “Todos irmãos” significa a síntese perfeita de seu pensamento social e político. O Papa é direto e corajoso ao atacar o consumismo, a globalização implacável, o liberalismo econômico, a tirania sobre a propriedade privada quando subtraindo direitos aos bens comuns. E até sobre o controle que as empresas digitais exercem sobre a população, incluindo aí as Fake News.
As formas menos compassivas de capitalismo são objeto de ácidas críticas do Pontífice. E o Papa aprofunda – “o mercado sozinho não resolve tudo, embora mais uma vez eles queiram que acreditemos neste dogma de fé liberal. É só um pensamento pobre e repetitivo”, reitera o Papa com firmeza pouco vista em qualquer Encíclica anterior. E conclui – “existem regras econômicas que foram eficazes para o crescimento, mas não para o desenvolvimento integral do homem.”
Convidado a falar para a Rádio Vaticano por conta da citação ao Samba do Brasil e a meu amigo Vinicius, fiz questão de realçar que o poeta foi muito católico na juventude chegando a ser coroinha no Colégio São Bento.
Chamei em especial a atenção da emissora pelo fato de Vinicius ter sido celebrado pelos amigos como um místico, defendo a religiosidade, essência segundo ele, do Bem. Mas também de torpes perseguições contra escravos nas senzalas do Brasil.
Concluí a extensa entrevista para o Vaticano reiterando que Vinicius pedia a benção, em comovedor preito de humildade, aos formadores negros e mulatos da MPB. Chamando-se a si mesmo de “Capitão do Mato, e o Branco mais Preto do Brasil”.
A Encíclica de Francisco nasce clássica e premonitória. Nesses cem anos creio que apenas João XXIII chegou a tal profundidade em solidariedade aos pobres.
Portanto, faltará pouco aos extremistas de direita para rotularem o Papa de comunista. Tal como Trump, que cancelou entrevista a um jornal francês desancando a Fratelli Tutti com receio de perder o voto católico nos Estados Unidos.
O poeta que louvou a arte do encontro usou de sua poesia para empunhar a verdade, mas em forma de oração no Samba da Benção:
“Fazer samba não é contar piada/e quem faz samba assim não é de nada/o bom samba é uma forma de oração...”
(Samba da Benção- Baden Powell e Vinicius de Moraes- 1967).
Ricardo Cravo Albin
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