:A pior pobreza é a da alma
> (http://veja.abril.com.br/noticia/brasil/a-pior-pobreza-e-a-da-alma/)Em "A Vida na
> Sarjeta", seu primeiro livro editado no Brasil,
> Theodore Dalrymple traça um retrato desencantado das
> camadas mais baixas da Inglaterra. Ao site de VEJA, o
> psiquiatra inglês, expoente da melhor tradição do
> conservadorismo anglo-saxão, explica por que a
> "miséria moral" que identifica entre britânicos
> deve servir de advertência para o Brasil do
> Bolsa-Família.De manhã, no hospital
> de um bairro pobre de Birmingham, ele atendia às vítimas.
> À tarde, no prédio vizinho, um grande presídio da segunda
> cidade mais populosa da Inglaterra, ouvia os algozes. Foi
> dessa perspectiva singular que Theodore Dalrymple,
> pseudônimo do psiquiatra inglês Anthony Daniels,
> investigou por 14 anos a miséria das camadas mais baixas da
> Grã-Bretanha. São os milhares de histórias de vida de
> pacientes e detentos que embasam o duro e desencantado
> retrato da Vida na Sarjeta (É
> Realizações, 280 pg, R$ 39,90), título do livro que chega
> ao Brasil na semana que vem.Na obra, o psiquiatra
> sustenta que, se a miséria material foi praticamente
> varrida do mundo desenvolvido, a "pobreza da alma"
> se aprofunda e galga velozmente a escala social, patrocinada
> pelo assistencialismo irrefletido e guiada por conceitos
> irresponsavelmente ventilados por intelectuais de esquerda.
> Tendo conhecido a miséria dos países africanos, onde
> trabalhou quando jovem, ele é taxativo: "Nada do que
> vi - nem a pobreza ou a opressão ostensiva - jamais teve o
> mesmo efeito devastador na personalidade humana que o
> indiscriminado Estado de Bem-Estar Social", escreve.
> "Nunca vi a perda de dignidade, o egocentrismo, o vazio
> espiritual e emocional ou a absoluta ignorância de como
> viver que vejo diariamente na Inglaterra."Dalrymple nunca havia
> sido editado no Brasil, embora seja um dos expoentes da
> melhor tradição do conservadorismo britânico - ou
> exatamente por causa disso... De qualquer forma, A Vida na
> Sarjeta é uma boa introdução à sua vasta
> bibliografia (mais de 20 títulos) e passeia por alguns dos
> temas que lhe são mais caros, e que critica impiedosamente,
> como o relativismo moral, a falência da educação, o
> esgarçamento dos laços familiares, o egotismo dos
> acadêmicos, o coitadismo, o politicamente correto, entre
> outros assuntos.O livro chega com
> atraso de nada menos que 13 anos, mas isso, paradoxalmente,
> pode torná-lo mais oportuno. O Brasil do Bolsa-Família e
> das cotas; da "nova classe C" e do Minha Casa,
> Minha Vida; que viu a desnutrição recuar e a obesidade
> ganhar contornos epidêmicos; em que quase todas as
> crianças vão à escola, mas a maioria chega ao fim do
> ensino fundamental sem competências básicas de escrita e
> matemática - esse país tem muito a aprender com a miséria
> moral da "abundância" britânica.O médico admite que
> nos países que ainda convivem com pobreza material, como o
> Brasil, seus argumentos podem parecer frívolos. Não são.
> "Com um pouco de sorte, A Vida na
> Sarjeta terá relevância para os brasileiros em
> alguns poucos anos", ironiza, em entrevista ao site de
> VEJA. Dalrymple aproveita para explicar a escolha do
> pseudônimo, com que protegeu sua identidade quando começou
> a assinar artigos mordazes e inconformados na imprensa
> britânica sobre as condições do hospital e da prisão em
> que trabalhava. "Theodore Dalrymple soa antigo, algo
> vitoriano, aristocrático, escocês. Pense em alguém muito
> mal-humorado, observando o mundo de seu clube em Londres,
> tomando uma taça de vinho do Porto, e dizendo que está
> tudo perdido (risos)."
> Capa de 'A Vida na Sarjeta: o círculo vicioso da
> miséria moral', de Theodore Dalrymple(Reprodução/VEJA)Como
> é a 'vida na sarjeta'? Na Europa e
> nos Estados Unidos, a pobreza é hoje definida em termos
> relativos. Em termos absolutos, os pobres já desfrutam de
> comodidades que teriam deslumbrado Luís XIV. Eles são
> pobres apenas em comparação com a média da população.
> Seu problema é outro: eles não sabem como viver. Não têm
> nenhum propósito mais elevado na vida. Não são
> religiosos, não têm crença política, não têm cultura
> própria. E não precisam lutar pela vida. Não passam fome
> e dá para ir levando a vida, sem grande esforço. Não
> falta assistência médica nem escola para os filhos. Não
> faz muita diferença se eles têm um emprego ou não. Eles
> não têm esperança de progredir economicamente, nem medo
> de quebrar. Vivem numa espécie de limbo, e seu mau
> comportamento é a única coisa que pode tornar a vida
> interessante.Este
> fenômeno é restrito à "subclasse" (underclass, no original)? Na
> verdade, não gosto muito do termo 'subclasse',
> porque implica afirmar que há uma grande diferença entre
> essa parcela da população e o resto, o que não é
> verdade. Há uma continuidade, e eu argumento no livro que
> certas atitudes disfuncionais estão se disseminando pela
> escala social, para além do que Marx poderia chamar de
> 'lumpemproletariado'. Não estamos falando de cerca
> de 5% da população. Se fosse assim, seria muito triste
> para esses 5%, mas não seria tão sério para a sociedade
> como um todo. O que ocorre é que certos fenômenos
> disfuncionais se disseminaram das classes mais baixas para
> as mais altas, com um decréscimo do nível geral de
> cultura.Por
> que o senhor põe a culpa nos
> intelectuais? Porque eles criaram essa
> noção, ao longo de mais de cem anos de propaganda, de que
> se as pessoas tivessem um lugar para morar, aquecimento
> adequado, comida suficiente etc., todos os problemas
> estariam resolvidos. Bom, eu acho ótimo que o padrão de
> vida das pessoas melhore, e que as pessoas tenham um lugar
> para morar, com aquecimento adequado etc. Mas o que acontece
> é que os problemas mudam de natureza. As políticas
> aplicadas sob influência de intelectuais liberais
> destruíram a família na Grã-Bretanha. Onde eu trabalhava,
> por exemplo, simplesmente não havia uma família em que o
> pai cuidasse dos filhos. Essa mudança aconteceu em
> pouquíssimo tempo, como efeito de políticas sociais e
> econômicas desastradas. Eu diria que o Estado de bem estar
> social foi uma condição necessária para a desagregação
> social a que assistimos na Inglaterra, mas não a única.
> Não observamos a mesma situação nos países da
> Escandinávia, por exemplo, e acho que há duas razões para
> esta diferença. Uma é escala. Você tem de lembrar que
> Londres é quase duas vezes a Dinamarca inteira, em termos
> de população. A outra razão é o nível de educação,
> que na Dinamarca é muito mais alto. Os dinamarqueses
> provavelmente escrevem melhor em inglês do que a maior
> parte dos ingleses. Assim, uma população com baixo nível
> educacional pendurada no assistencialismo, essa é a receita
> do desastre.O que
> há de errado com as escolas
> britânicas? Temos muitas escolas, mas o
> ensino é muito ruim em várias delas, principalmente nas
> áreas em que a escolaridade é mais necessária, ou seja,
> onde não há o apoio das famílias. Cerca de 20% das
> crianças inglesas deixam a escola sem saber ler direito.
> Isso não tem nada a ver com o dinheiro que se gasta com
> elas. Na verdade, dá para ensinar a ler gastando muito
> pouco e bem depressa. E, no entanto, isso não está sendo
> feito. E quem mais sofre são as crianças mais
> vulneráveis, que vêm de famílias que não dão muita
> atenção à educação.E isso
> também é culpa dos intelectuais? A culpa é
> dos educadores que impuseram às escolas métodos que não
> funcionam e que não mudam há 30 ou 40 anos. Nós sabemos
> por experiência que mesmo as crianças que vêm dos piores
> lares podem aprender a ler e escrever corretamente. As
> experiências mostram isso. E tudo que é necessário são
> métodos educacionais eficientes - como os que eram usados
> 50 anos atrás. Só que há uma teimosa recusa em reconhecer
> isso. No antigo sistema, crianças inteligentes e
> habilidosas eram selecionadas para seguir cursos acadêmicos
> puramente na base da competência e do mérito. Mesmo em
> áreas bem pobres, havia escolas muito boas, com um padrão
> bem alto. Foi assim durante muitos anos. Meu pai frequentou
> uma dessas escolas em Londres e se lembra de alunos que iam
> às aulas sem sapatos. Esse modelo garantia um certo grau de
> mobilidade social. É claro que só uma minoria de crianças
> era beneficiada, mas pelo menos era um sistema de genuína
> meritocracia.Por
> que essas ideias não têm o mesmo efeito perverso sobre a
> classe média? Há duas razões. A primeira é
> que a classe média se preocupa muito mais com a educação.
> Se as crianças não vão bem na escola, os pais tomam
> alguma providência para melhorar a situação. E a segunda
> é que, na verdade, esses métodos não são impostos com a
> mesma firmeza sobre a classe média, porque ela reagiria a
> isso. Assim, a experiência é feita com os mais
> vulneráveis, que não sabem protestar, nem reclamar - a
> não ser através da violência física. Se fôssemos ceder
> à teoria conspiratória marxista, poderíamos dizer que o
> sistema educacional inglês é o meio pelo qual a classe
> média se assegura de manter fora de competição a metade
> mais pobre da população.O
> senhor escreve que a "pobreza da alma" é muito
> pior que a pobreza material. Que lições países que ainda
> lidam com a miséria material, como o Brasil, devem tirar da
> "subclasse" dos países mais
> desenvolvidos? Mesmo em países miseráveis da
> África, onde trabalhei, nunca vi tamanha pobreza espiritual
> ou psicológica como a que observei na Inglaterra. E isso,
> eu acho, só pode ser explicado pela privação do sentido
> da vida. São pessoas capturadas por esse ciclo de
> dependência, em que nada parece tornar a vida melhor ou
> pior. Não há esperança, nem medo. Isso é algo que os
> brasileiros devem saber e evitar. Deixe-me dar um exemplo.
> Na Inglaterra, em 2006, antes da crise econômica, nós
> tínhamos 2,9 milhões de pessoas vivendo graças ao
> auxílio-doença. Elas não eram considerados desempregadas,
> mas doentes. Acontece que a grande maioria não tinha
> enfermidade nenhuma - ou teríamos mais doentes do que na
> 1ª Guerra Mundial. Essa corrupção moral tem um efeito
> profundo sobre a sociedade, tanto sobre as pessoas que pedem
> o benefício, como os médicos que dão os atestados e até
> sobre o governo, que pôde melhorar seu indicador de
> desemprego.O
> assistencialismo tem um peso grande na vida dos brasileiros.
> Um em cada quatro pessoas é beneficiado por programas de
> transferência de renda, que praticamente todos os
> políticos apoiam. É possível erguer uma rede de
> proteção social que atenda à população necessidade sem
> incentivar os vícios que o senhor
> identifica? Eu não conheço muito bem o
> Brasil. Mas é certamente perigoso permitir que
> transferências regulares se tornem mais importantes que a
> renda das pessoas, porque haverá uma pressão para
> aumentá-las cada vez mais, em detrimento não só de toda a
> economia, mas também do caráter dos beneficiados. E é
> claro também que esses benefícios, quando elevados, acabam
> se tornando um direito divorciado de qualquer forma de
> merecimento. Se você tem direito a uma casa, renda,
> educação, assistência médica e tudo o mais, qual o
> sentido do esforço? Acho que, se bem controlada, não há
> razão para não ter uma rede de proteção social. O
> problema é que na Europa, particularmente na Grã-Bretanha,
> o sistema saiu de controle.Qual o
> peso da revolução sexual na equação da "miséria da
> alma"? Não quero soar como um puritano,
> porque não sou, mas o verdadeiro problema é que o conceito
> de paternidade mudou. Na região em que eu trabalhava,
> nenhuma mãe levava em consideração se o pai do seu filho
> era adequado ou não. E isso me parece catastrófico. Quando
> eu perguntava para uma criança quem era o seu pai, ela às
> vezes dizia algo como "você quer dizer o meu pai no
> momento?". Nenhum pai assumia a responsabilidade por
> seu filho. Muitas crianças não tinham ideia do que era uma
> família. Para elas, o pai era um padrasto serial, que vinha
> e passava um tempo com elas e depois ia embora. Logo haveria
> um outro. Isso é terrível para as crianças. Uma geração
> de intelectuais vendeu a ideia de que conforto material e
> relacionamentos sem qualquer tipo de amarra tornariam a
> humanidade livre. Mas sem relações estruturadas, não pode
> haver confiança entre um homem e uma mulher. Isso leva ao
> ciúme e à violência. O custo das relações estruturadas
> por obrigações sociais, claro, é um certo grau de
> hipocrisia, porque, bem, o ser humano é o que ele é: não
> obedece às regras, mas finge que obedece. De qualquer
> forma, isso é melhor do que relações sem nenhuma amarra.
> Uma das razões de os homens serem tão ciumentos é que
> sabem o quanto eles próprios são predatórios. O tipo de
> promiscuidade que eu vi não seria relevante se esses homens
> aceitassem que a mulher também fosse promíscua, mas não
> é isso que acontece. Os homens querem a posse exclusiva da
> mulher, ao mesmo tempo que dão em cima da mulher de
> qualquer um, e é fácil ver que isso gera violência, tanto
> entre homens e mulheres como entre rivais que disputam uma
> mesma mulher.Como
> nasceu seu interesse pela
> 'subclasse'? Eu trabalhava numa
> região complicada, como psiquiatra em um hospital. Vi algo
> como dez a quinze mil casos de tentativas de suicídio. E
> cada pessoa me falava sobre a sua vida e a vida de pessoas
> próximas. Isso significava ouvir a história da vida de 60,
> 70, 80 mil pessoas. Minha amostra é seletiva, claro, mas
> não é pequena. E também trabalhei numa prisão, com mais
> ou menos 1.400 detentos, que ficava ao lado do tal hospital.
> Eram prédios vizinhos. A principal diferença entre eles
> era que havia muito menos violência... na prisão. De
> manhã eu ouvia histórias de vítimas de crimes, e à tarde
> eu ouvia seus algozes. Foi assim que eu desenvolvi um
> interesse por tais assuntos.Sente
> falta desse trabalho? Sim, mas resolvi me
> aposentar enquanto eu ainda sentia prazer em trabalhar. Isso
> pode parecer absurdo, mas queria parar com um certo número
> de boas recordações. O que eu presenciei não era lá
> muito agradável, mas era extremamente interessante.Alguns
> textos deste livro foram publicados nos anos 1990. A sorte
> da subclasse melhorou desde então? Acho que
> continua a mesma coisa. E eu também não mudei de opinião.
> Aliás, para ser honesto, acho que já disse tudo que tinha
> a dizer sobre esse assunto. Atualmente faço crítica de
> arte e de literatura. E estou escrevendo minhas memórias da
> prisão. É que passei mais tempo na prisão do que a
> maioria dos presos...'A
> Vida na Sarjeta' é seu primeiro livro publicado no
> Brasil, o que parece refletir certa hostilidade do mercado
> editorial contra autores conservadores. Esse
> viés também existe na Inglaterra. Durante muitos anos não
> houve uma edição inglesa de A Vida na
> Sarjeta. Embora trate do que vi na Grã-Bretanha, foi
> primeiro publicado nos Estados Unidos, assim como outro
> livro meu em que argumento que o vício em heroína não
> deve ser tratado como uma doença. Nos dias da Amazon,
> contudo, isso já não importa mais. De qualquer forma,
> espero que meu livro tenha alguma relevância para os
> brasileiros. Vejo que pode ser difícil para os brasileiros
> aceitar o tipo de coisas que afirmo, por ainda conhecerem a
> pobreza material. Com um pouco de sorte, porém, A Vida na Sarjeta terá relevância para
> os brasileiros em alguns poucos anos.
> ________________________________________
> Professor Manuel Carvalho Alexandrino
> Diretor Técnico do Espaço Educativo
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