Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Em torno do Natal

Em torno do Natal 

   SYLVIA LEÃO

Quase havia me esquecido de ser Natal. Desacostumada há anos da Missa do Galo, dos pais em aguardo com a mesa posta, dos adornos vermelhos, verdes e dourados, encaminhando os olhos e o paladar ao centro da mesa; e de atravessar o longo corredor encerado com passadeira de veludo vermelho; da ridente e gorducha face de porcelana do Papai Noel, pendurada na parede, ao lado da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro- em velha moldura de madeira com os frisos dourados, quase apagados; dos presentes que dava à mamãe, sabendo que iria usá-los, logo em seguida; dos que dava ao papai, suspeitando que ele iria dar ao meu irmão, ao ponto de com o passar dos anos, eu por precaução enciumada, proibia na loja que houvesse a troca por um número maior, garantindo assim  que o  meu irmão não ficasse com o “meu presente”;  da minha irmã, que combinávamos sempre o que iríamos dar uma a outra, de modo que pudéssemos trocar emprestado quando quiséssemos. 

Da rua, eu me lembro, as portas das casas abertas, os amigos hoje envelhecidos como nós, com os filhos crescidos como os nossos, na época juvenis, ajuntávamo-nos, entrávamos e saíamos das casas, trocando lembranças, recordações agora comuns, dos Natais que partilhamos durante anos, sempre do mesmo jeito – era a Grande Noite esperada, aquela em que todos poderíamos dormir mais tarde, ficar acordados até depois da meia-noite, sem  levar “carão”, pois podíamos entrar e sair da casa dos outros, em bandos, pedindo água, quebrando bibelôs, tocando campainhas e nos escondendo, a passos e risos largos. 

Ainda há, na casa que hoje guardo em meus sonhos, no canto direito da cozinha, embaixo do basculante de vidro caraquento , o fogão branco, asas de ágata, tampas verdes e o botão vermelho do forno. De lá , daquela misteriosa caverna escura por dentro, exalavam os cheiros da Grande Noite, gratinados em chamas azuis, novinhas como o brilho das estrelas.

A toalha, sempre a mesma, anos após anos, bordada à mão com árvores, pontes de bambu, cachos de uvas, riachos com garças, gueixas várias em atividades diversas, pagodes a cada palmo de mão e florzinhas e florzinhas e florzinhas que eu contava deitada no chão, pelo avesso, até ficar sonolenta. 

A porcelana branca, completa, made in England, distribuída nos cinco lugares marcados e os talheres de prata, faqueiro antigo de muitos andares que meus olhos viam e o meu coração queria tanto que, um dia, fossem meus! Esse jogo cujas peças desde a infância eram cobiçadas, foram muitas vezes, aos poucos, subtraídas por mim -  mulher já feita, parida e de casa montada, em conluio com a velha empregada da mamãe, que me telefonava avisando a hora propícia para eu realizar o furto, pois a mamãe havia saído, e com certeza, iria demorar.  A casa arrumada, cada quarto encerado com cera Cachopa, com seu tapete e as camas, com suas colchas melhores, as cômodas coloniais oleadas com óleo de Peroba, os vestidos por sobre as colchas e as expectativas grudadas nos algarismos romanos do velho relógio de corda, pendurado na parede azul da sala de jantar.

As cadeiras de balanço na calçada, arrodeadas de velhos e crianças-nós, e depois, eles mais velhos ainda e nós adolescentes, já distribuídos em pares abraçados, de mãos dadas, andando daqui para acolá, impacientes com a obrigação do ritual de termos que ficar até meia-noite em casa com os pais, porque isso era besteira: o Natal era um dia como outro qualquer, nem éramos mais católicos, não acreditávamos mais em Deus, e,  além disso, o papai dormia cedo, eu não gostava de peru e tinha que ficar ali, sem fazer nada, perdendo tempo, enquanto podia estar namorando na Beira-Mar, estar com amigos, conversando e nos divertindo, como já tínhamos deixado tudo combinado, desde muito cedo.

Hoje já é quase Natal! Meus pais morreram, a casa foi vendida, meus filhos crescidos provavelmente estão pensando como eu pensava na idade adolescente deles.

Eles ficarão conosco, por obrigação, até a meia noite! Não haverá surpresas embaixo da cama, cada um já escolheu o seu presente. Vou ver se eles se dispõem a ir à missa, não precisa ser a Missa do Galo, qualquer uma serve, convenço-me, o que vale é a intenção! 

A toalha japonesa está amarelada, com muitas manchas e pequenos furos, guardo-a com carinho, de lembrança apenas, não tem mais utilidade. A porcelana, mesmo incompleta, será usada.  O faqueiro de prata, pedirei emprestado à minha irmã, ela o herdou. 

O peru de Natal, que até hoje dele não gosto, ocupará o centro da mesa, das minhas lembranças.  Não haverá cadeiras na calçada, pois não há amizade na vizinhança. A família se partiu com a partilha da herança, os bens herdados não foram os que constam no inventário.

Mas aguardo, oh! como aguardo, e guardo no coração a família mítica, itinerante, guiada pela Estrela, a depositar seu mais precioso dom entre palhas ou feno, quando o mais sublime dos poderes é estar ali, inocente, diante da admiração do ser visto, contemplado, querido – não importam os olhos, quer sejam dos bois, das ovelhas, dos reis, ou dos pais e das mães, ou dos amigos.

Eis o maravilhoso e simples do Natal: despertar a inocência esquecida no coração dos homens!   

 

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