Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

HEGEMONIA E ORTODOXIA - Rui Martinho Rodrigues

 

HEGEMONIA E ORTODOXIA

O movimento político e cultural impulsionado pelo Iluminismo se aproximou do completo êxito. Secularizou a cultura. A política como engenharia social e antropológica, dirigida por sábios semelhantes aos reis filósofos de A República de Platão (428/427 a.C. – 348/347 a.C.) dominou os meios intelectuais e artísticos. Pesquisa sociológica, histórica, a reflexão política, filosófica e até teológica, sofreram influência da ideia de uma ordem concebida por sábios, levando Raymond Aron (1905 – 1983) a cunhar a expressão “ópio dos intelectuais”, na obra assim intitulada.

Os iluministas lançaram mão do enciclopedismo para difundir a ideia da engenharia social e antropológica. O advento dos jornais também foi usado para este fim. O surgimento de jornais tem sido associado a uma onda de revoluções, com destaque para a Francesa de 1789. A Sociedade Fabiana, surgida na Inglaterra, na década de 1880, reuniu intelectuais e líderes de diferentes áreas com o objetivo de promover o socialismo. O título invoca a memória do general e ditador romano Quinto Fabio Maximo (275 a.C. – 203 a.C.), que ganhava batalhas sem travar combates decisivos, fustigando o adversário com escaramuças, desgastando-o até obter vitória. Nem é preciso lembrar a influência do Iluminismo.

Os fabianos não queriam cargos no governo. Pretendiam mudar o pensamento da sociedade, algo semelhante ao que Mao Tsé Tung (1893 – 1976) expressou ao dizer que tinha como objetivo a conquista de corações e mentes; György Lukcás (1885 – 1971) disse, em um dos seus pronunciamentos, ter como objetivo a conquista da cultura; Antônio S. F. Gramsci (1891 – 1937) declarou a inutilidade que seria, no ocidente, tomar o palácio de inverno (aludindo ao que foi feito na Revolução Russa), dizendo ser necessário obter a hegemonia ideológica, na obra Os intelectuais e a organização da cultura; Louis Althusser (1918 – 1990), na obra Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, dedicada inteiramente ao desafio da hegemonia ideológica. Os frankfurtianos todos dedicaram-se ao problema da indústria cultural e ao domínio da cultura.

A análise das transformações culturais e políticas do momento deve começar pelo sentido em que usamos as palavras ideologia, hegemonia, guerra cultural. Este último aspecto guarda relação com os conceitos de liberdade, igualdade, bem-estar social, segurança jurídica e justiça. Um pequeno ensaio como este só pode oferecer uma degustação do desafio de tentar compreender o tempo presente. Ideologia expressava um conjunto de conceitos e explicações que orientavam escolhas políticas e sociais, pessoais ou coletivas. Adquiriu o sentido de uma percepção ou discurso distinto do conhecimento epistemologicamente válido, fundado na razão e nos fatos. Servir a um poder ou projeto de poder, legitimando-o, é o seu objetivo. (Dicionário de ciências sociais, FGV. Coordenado por Benedicto Silva). Hegemonia, para os estóicos, era a razão que anima e governa o mundo, merecedora do poder e do domínio sobre tudo (Dicionário de Filosofia; Nicolas Abbagnano).

Guerra cultural sofre objeção de quem argumenta contra a banalização da palavra guerra. Carl P. V. G. Clausewitz (1780 – 1831), na obra Da Guerra, definiu guerra como a continuação da política por outros meios. Aceita a proposição do general prussiano, o corolário do seu conceito também é válido: política é uma guerra travada por outros meios. Guerra é um conjunto de meios para alcançar um fim contrariando a resistência de opositores. Clausewitz distinguia guerra real de guerra absoluta. Real é a observável na experiência histórica. Absoluta é a pertencente ao mundo das ideias e concepções abstratas. Guerra cultural não banaliza do conceito, cabe perfeitamente na concepção de guerra absoluta do pensador citado. Visa impor uma mudança cultural, política e econômica radical, valendo-se de todos os meios para submeter a resistência.

O conjunto de conceitos e explicações que orientam escolhas políticas, posto a serviço de um poder ou projeto de poder (ideologia), impacta em tudo, influenciando a visão de mundo. A política é impactada pela ideologia no que concerne à liberdade, igualdade, bem-estar, justiça e segurança jurídica. No campo político e ideológico omissão, informação parcial, satanização do outro, negação e adulteração de dados alternadamente com o discurso abstrato, conceitos indeterminados e promessas sedutoras são armas largamente usadas.

A manipulação, seja como doutrinação, como catequese ou outra forma de proselitismo podem ser flagradas no magistério e na mídia quando ideias ou modelos apresentados não são submetidos ao contraditório. A falta de objeção às visões e autores ministrados é imperdoável. Teoria do valor trabalho versus teoria marginal do valor; liberdade de agir e de fazer versus liberdade de ser; igualdade de todos em tudo (sem exemplo histórico, abstração utópica) versus igualdade de todos em algo (perante a lei, não na lei); igualdade de alguns em tudo (os reis filósofos de Platão) versus igualdade de alguns em algo (menores, gestantes, idosos, aposentadoria, serviço militar para homens).

Não fazer distinções como estas, apresentando propostas vagas, baseadas em conceitos indeterminados é uma poderosa tática de proselitismo. No conto Teoria do medalhão, de J. M. Machado de Assis (1839 – 1908), um pai ensina o filho a fazer sucesso valendo-se, entre outras coisas, do discurso vago, que permite a qualquer um entender como algo com que concorda.

Bem-estar é outra arma na guerra cultural. É um conceito indeterminado. Abraham H. Maslow (1908 – 1970) definiu uma hierarquia de necessidades que qualificou como básicas, roteiro da plena realização. O psicólogo esqueceu a subjetividade. A hierarquização das necessidades é apresentada por ele como um dado objetivo. O prato de comida, o celular da nova geração, a roupa de marca e tantas outras coisas não exercem atração conforme uma hierarquia definida de necessidades, embora existam tendências. A subjetividade das necessidades faz do bem-estar uma sequência interminável de desejos. A transformação da cupidez em direito legítimo e a sua frustração como opressão é uma poderosa arma no campo da guerra política no campo cultural.

Criamos uma sociedade de inimputáveis, já que a opressão entendida como aspiração não realizada por culpa de terceiros exclui a responsabilidade individual. Quem oprime é o outro. O sucesso é responsabilidade do Estado provedor e da sociedade. A liberdade de ser, ao excluir o sentido do dever, introduz a instabilidade da modernidade líquida (Zygmunt Bauman, 1925 – 2017) e com ela a incerteza e a insegurança.

A desorientação se agrava quando se pensa que “livre pensar é só pensar” (Millôr Fernandes [Milton Viola Fernandes], 1923 – 2012). O pensamento é uma alvenaria. Os seus tijolos são conceitos e dados cimentados por rigorosa vigilância epistemológica. Não basta pensar sobre inflação quando não se conhece um conjunto de saberes como a teoria quantitativa da moeda, a eslasticidade-preço etc. Não basta pensar as relações sociais sem distinguir a teoria de estratificação social baseada na origem da renda versus teoria de estratificação baseada na quantidade de renda (posição no mercado). Pensar exige estudo prévio.

A hegemonia é ortodoxia. Sataniza a divergência como ignorância ou má-fé, projetando no outro a própria condição. Os que resistem à catequese passam a condição de insensíveis, preconceituosos ou fascistas. A exitosa guerra cultural ocupou os sindicatos, as escolas, a mídia e o aparato estatal. Mas nunca é tarde para defender a liberdade de agir, a igualdade de todos em algo, a liberdade de consciência e a paz da segurança jurídica, do governo das leis.

Fortaleza, 24/12/22.

Rui Martinho Rodrigues

 

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