PARTE
V
CONHECIMENTO, PAIXÃO E POLARIZAÇÃO IV
A incomunicabilidade dos paradigmas e a
imunização cognitiva são antípodas do ecletismo, que é a justaposição de
teorias distintas por força de uma escolha seletiva de contribuições teóricas (Antônio
Houaiss, 1915 – 1999). O sincretismo, mais que o ecletismo, também é entendido
como antítese do viés de confirmação próprio da inacessibilidade mútua das
tradições teóricas e metodológicas adversas. Originariamente sincretismo
referia-se a união dos cretenses contra um inimigo comum, uma coalisão com
diferentes integrantes. Modernamente passou a designar doutrinas que misturam
teses sem um critério de seleção (Filosofia do Ferrater Mora, 1912 – 1921).
Antíteses, sem que precisemos aderir a
G. W F. Hegel (1770 – 1831), podem originar sínteses, embora nem sempre isentas
de contradições e paralogismos. O ecletismo que acomoda posições
inconciliáveis, portanto mais próximo do sincretismo, é uma forte tendência no
pensamento pós-moderno. A síntese de teses imiscíveis pode ocultar o predomínio
de umas delas, ainda que invoque a outra como arrimo. Assim, o que temos é a
incomunicabilidade dos paradigmas oculta sob o manto do ecletismo, como forma
de conquista da hegemonia ideológica por uma linha de pensamento. O controle
hegemônico é uma forma de ortodoxia, o que vale dizer, de intolerância.
Os meios teológicos facilmente caem na
tentação da ortodoxia, classificando como heresia o pensamento divergente. Isso
pode ser um instrumento útil ao pensamento secular voltado para a justificação
da conquista do poder ou para a manutenção ou expansão da dominação, atitude
que caracteriza uma certa concepção de ideologia. O pensamento político é
permeado por tradições míticas e místicas (Raoul Girardet, 1917 – 2013) na obra
Mitos e mitologias políticas. As táticas usadas pelo proselitismo e as
limitações dos estudiosos do campo secular em relação ao conhecimento
teológico, se somam às lacunas de alguns teólogos quanto aos saberes seculares
e até no seu próprio campo, ensejando o sincretismo, não a expressão da
revelação nem do rigor metódico dos bons estudos seculares.
As chamadas religiões do livro, a
exemplo do judaísmo, cristianismo e islã, têm como fundamento livros havidos
como revelados, cujos conteúdos tratam das relações entre Deus e os homens
(verticais), de uma cosmogonia e uma orientação codificada das relações
horizontais (entre os homens). As teologias das citadas tradições religiosas
diferem do pensamento filosófico e do científico por terem como premissa a
revelação, embora daí por diante, adotem o mesmo rigor metódico da Filosofia e
da ciência.
A mistura heterogênea de significados
atribuídos a uma mesma palavra é um dos problemas do sincretismo especialmente
no uso das palavras igualdade, solidariedade e justiça. Este último vocábulo,
mormente quando invocado como Direito Natural, causa muita confusão. Desigualdade,
no discurso secular de índole libertária, tem conotação de injustiça (J.
D’Assunção Barros, (1957 – vivo), na obra Igualdade e diferença. A concepção
material e paritária ou igualdade na linha de chegada, nomeada como igualdade
de resultados, é a base da conotação de injusto no diferente. Abriga a
presunção de exigir prestações positivas como crédito contra o Estado (Carlos Simões,
na obra Teoria & crítica dos direitos sociais).
Igualdade jurídica é o direito de agir, não
de exigir de terceiros. Trata dos direitos negativos, que condenam a imposição
de obstáculos a ação dos cidadãos. São os direitos civis e políticos ou
direitos da liberdade. Já o direito de exigir tem produzido a indiferenciação
entre direitos e desejos, inclusive direito de ser, com exigibilidade contra
terceiros. Estes são os chamados direitos sociais. O direito de ser enfrenta
obstáculos materiais intransponíveis. A exigência de prestações positivas
dirigidas contra o Estado encontra obstáculo na reserva do possível.
O cristianismo não
guarda relação com a indiferenciação entre desejos e o direito de ser. Não
trata do direito de exigir. A solidariedade cristã não é um título de crédito
contra o Estado, mas uma orientação e uma obra meritória que não pode ser
terceirizada transferindo o ônus para uma personalidade jurídica de direito
público, recaindo sobre terceiros que pagam impostos. O cristianismo não tem
uma política secular, pois diz: a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de
Deus (Mateus 22; 15 – 21). Apresentar as próprias cogitações como o que para os
cristãos é revelação é fruto de paixão, interesse e causa polarização.
Apresentar a vontade de potência, criando uma ordem social em que as pessoas
sejam dependentes dos herdeiros dos reis filósofos de Platão encarregados de
dirigir tudo, também é fruto de paixão, interesses e causa polarização.
Fortaleza, 13/9/22.
Rui Martinho Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário