UM TRIBUTO NECESSÁRIO, MAS RARO: HEITOR DOS PRAZERES
“- Mas quem é e de onde vem este pintor extraordinário?” a pergunta - feita nos anos 50 pela recém entronada rainha Elizabeth II numa mostra de arte latino-americana em Londres - ajudou a consagrar Heitor dos Prazeres como pintor.
Nem eu poderia imaginar que o moleque paupérrimo nascido no Rio há 120 anos neste 2018 seria evocado por mim, tanto tempo depois , com certa pompa e circunstância.
Só que em Londres, nem a rainha nem os críticos de arte, poderiam imaginar que Heitor fosse muito mais que um pintor primitivo, capaz de captar - com originalidade no traço e gênio nas cores – todo o universo boêmio do Rio, com suas rodas de samba e suas mulatas.
O Heitor dos Prazeres, cuja data redonda de nascimento o Brasil parece desprezar, foi um pioneiro relevante. E não só como pintor primitivo de fina estirpe.
Foi pioneiro como testemunha ocular do nascimento do samba na casa de Tia Ciata, onde viu nascer o “Pelo Telefone”(1917, Donga – M. de Almeida). Foi pioneiro igualmente como autor de sambas iniciais, que se seguiram aos de Donga, João da Bahiana, Sinhô e Pixinguinha, seus colegas de folguedos musicais e do candomblé, realizados nos casarões decadentes onde moravam as Tias Baianas, na antiga Praça XI. Pioneiro, finalmente, como fundador da Portela, a Escola de Samba onde era conhecido como Mano Lino.
Querem ainda mais do Heitor ? Pois saibam que foi objeto de admirações ilustres, desde presidentes da República, como Juscelino ,até intelectuais do porte de Carlos Drummond. O poeta, inclusive, lhe era intimo, a ponto de conseguir-lhe um emprego no Ministério da Educação.
Conheci Heitor na antiga Galeria Goeldi, fundada pelo crítico Clarival Valladares, que a ele me apresentou : “- Este é o melhor pintor do Brasil, porque nunca estudou nada e sabe tudo.”
Nem desconfiava meu mestre Clarival que eu já colecionava todos os discos do sambista - não os quadros, é claro, que a essa altura já valiam fortunas. Esses discos eram os sambas gravados pelo conjunto “Heitor e sua gente “, a mim indicados com fervor por Lúcio Rangel e Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que costumava chamar Heitor de “Prazeres Duplos”, os da pintura e do samba.
Assim que criei no MIS (1966) os depoimentos para a posteridade, um dos primeiros a gravar foi Heitor, de quem já sabia (por telefonema de Carlos Drummond) estar com os dias contados, portador que era de câncer no pâncreas. O grande pintor-compositor gravou durante 3 horas a meu lado, contou toda a sua vida, falou de sucessos como “Pierrô Apaixonado” (com Noel Rosa, onde ele se retratou no quadro Pierrô Azul, aqui postado. Estaria o sambista apaixonado por uma de suas cabrochas na época), “Lá em Mangueira ” (com Herivelto Martins) e “Mulher de Malandro”, este um maravilhoso samba sem parceiro e que foi gravado por Chico Alves.
Ao me despedir na porta do Museu, o sambista, sempre impecavelmente vestido de terno escuro e usando severos óculos redondos, saiu-se com esta :
“- Vou te dizer um segredinho que não pude contar aí dentro. O malandro da mulher do samba era este seu criado.”
E piscou o olho estrábico, moldura perfeita para aquele rosto enérgico e cheio de furinhos de bexigas.
Foi a última vez que o vi.
Ricardo Cravo Albin.
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