O PARAÍSO DA DÚVIDA
No meio forense a expressão “paraíso dos
caloteiros” é o modo pejorativo de aludir a difilculdade, no ordenamento
jurídico brasileiro, que os credores enfrentam para fazer valer os seus direitos.
A dúvida espreita. A incerteza chegou ao processual penal. O STF, legislando
positivamente (criando lei), decidiu que o rito processual penal deve adotar
procedimentos não previstos em lei; deve, ao arrepio da lei, distinguir entre
réus, tratando desigualmente pessoas em situação igual; deve reconhecer
nulidade sem prejuízo para as partes.
O STF anulou uma sentença alegando que
os réus que colaboraram com o Ministério Público apresentaram o memorial das
alegações finais no mesmo prazo dado a quem não colaborou. Assim os réus colaboradores
foram equiparados aos titulares da persecução penal. Explicando: a defesa deve
falar depois da acusação. Acusador é quem apresenta a peça acusatória e tem a
iniciativa de outros procedimentos concernentes ao andamento do processo. Réus
colaboradores não apresentam a acusação, apenas fornecem informações que o
Ministério Público (MP) poderá usar na peça acusatória, se antes promover
alguma produção de prova.
Informações prestadas pelos réus
colaboradores não têm valor probante. O STF, porém, equiparou os réus
colaboradores ao MP. Este sim, deve falar antes dos réus. Decretou assim a
desequiparação entre réus, criando uma desigualdade injustificável; instituiu
um procedimento não previsto em lei no âmbito do processual penal. A mais alta
corte legislou positivamente mais uma vez. O STF só pode legislar
negativamente, excluindo do ordenamento júridico normas inconstituicionais.
Já não sabemos o que é conforme a lei.
Mas continua prevalencendo a presunção segundo a qual todos conhecem a lei,
sendo impossível alegar o seu desconhecimento. Isso será mudado? Outra dúvida
diz respeito ao momento da preclusão temporal (limite da oportunidade de
apresentar nova prova ou contraprova). Acatar a tese de que a defesa dos réus
que não colaboraram deve falar depois dos colaboradores é o reconhecer que há
prejuízo para a defesa. A preclusão se dá antes das alegações finais. Os réus
colaboradores não podem apresentar novas provas. A peça acusatório do MP já é
do conhecimento das partes quando das alegações finais. Não há prejuízo nem
nulidade. O STF, porém, acolheu a tese da nulidade. Está dizendo que houve ou
poderia haver prejuízo para a defesa, admitindo novas provas. Não temos preclusão
ou temos nulidade sem prejuízo?
O STF decidiu, com ineditismo, modular o
alcance de um habeas corpus. Poderá esclarecer algumas dúvidas. Isto é: o Pretório
Excelso continuará legislando. Talvez esclareça se a decisão terá efeito ex
tunc (desde o início, mas qual início?) ou ex nunc (desde agora, daqui para
frente). Haverá alguma absolvição? Se houve prejuízo poderá, sim, haver
absolvição. Neste caso, os bilhões de reais devolvidos pelos condenados como
corruptos serão restituídos aos inocentados? Ou os inocentados sofrerão prejuízo?
O Estado terá obrigação de indenizar os danos morais e materiais?
Não temos leis, mas
entendimentos jurisprudenciais. A obrigação de fundamentar decisões não
representa segurança jurídica. Pode-se “fundamentar” qualquer coisa quando se
tem a prerrogativa de errar por último. Somos o paraíso da dúvida jurídica (insegurança).
O poder do STF tornou-se ilimitado. Surge então uma dúvida política: pode haver
poder ilimitado na democracia? O ativismo judicial, como nova edição revista e
ampliada do tenentismo, agora envergando a toga, é democrático?
Portp Alegre, 2/10/19.
Rui Martinho Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário