07/09/2013 - 03h00
Demagogia eleitoreira
A questão dos médicos estrangeiros caiu na vala da
irracionalidade.
De um lado, as associações médicas cobrando a revalidação dos
diplomas obtidos no exterior; de outro, o governo que apresenta o programa como
a salvação da pátria.
No meio desse fogo cruzado, com estilhaços de corporativismo,
demagogia, esperteza política e agressividade contra os recém-chegados, estão
os usuários do SUS.
Acompanhe meu raciocínio, prezado leitor.
Assistência médica sem médicos é possível, mas
inevitavelmente precária. Localidades sem eles precisam tê-los, mesmo que não
estejam bem preparados. É melhor um médico com formação medíocre, mas boa
vontade, do que não ter nenhum ou contar com um daqueles que mal olha na cara
dos pacientes.
Quando as associações que nos representam saem às ruas para
exigir que os estrangeiros prestem exame de revalidação, a meu ver cometem um
erro duplo.
Primeiro: lógico que o ideal seria contratarmos apenas os
melhores profissionais do mundo, como fazem americanos e europeus, mas quantos
haveria dispostos a trabalhar isolados, sem infraestrutura técnica, nas
comunidades mais excluídas do Brasil?
Segundo: quem disse que os brasileiros formados em tantas
faculdades abertas por pressão política e interesses puramente comerciais são
mais competentes? Até hoje não temos uma lei que os obrigue a prestar um exame
que reprove os despreparados, como faz a OAB.
O purismo de exigir para os estrangeiros uma prova que os
nossos não fazem não tem sentido no caso de contratações para vagas que não
interessam aos brasileiros.
Esse radicalismo ficou bem documentado nas manifestações de
grupos hostis à chegada dos cubanos, no Ceará. Se dar emprego para médicos
subcontratados por uma ditadura bizarra vai contra nossas leis, é problema da
Justiça do Trabalho; armar corredor polonês para chamá-los de escravos é
desrespeito ético e uma estupidez cavalar.
O que ganhamos com essas reações equivocadas? A antipatia da
população e a acusação de defendermos interesses corporativistas.
Agora, vejamos o lado do governo acuado pelas manifestações
de rua que clamavam por transporte público, educação e saúde.
Talvez por falta do que propor nas duas primeiras áreas,
decidiu atacar a da saúde. A população se queixa da falta de assistência
médica? Vamos contratar médicos estrangeiros, foi o melhor que conseguiram
arquitetar.
Não é de hoje que os médicos se concentram nas cidades com
mais recursos. É antipatriótico? Por acaso não agem assim engenheiros,
advogados, professores e milhões de outros profissionais?
Se o problema é antigo, por que não foi encaminhado há mais
tempo? Por uma razão simples: a área da saúde nunca foi prioritária nos últimos
governos. Você, leitor, lembra de alguma medida com impacto na saúde pública
adotada nos últimos anos? Uma só, que seja?
Insisto que sou a favor da contratação de médicos
estrangeiros para as áreas desassistidas, intervenção que chega com anos de
atraso. Mas devo reconhecer que a implementação apressada do programa Mais
Médicos em resposta ao clamor popular, acompanhada da esperteza de jogar o
povo contra a classe médica, é demagogia eleitoreira, em sua expressão mais
rasa.
Apresentar-nos como mercenários que se recusam a atender os
mais necessitados, enquanto impedem que outros o façam, é vilipendiar os que
recebem salários aviltantes em hospitais públicos e centros de atendimentos em
que tudo falta, sucateados por interesses políticos e minados pela corrupção mais
deslavada.
A existência no serviço público de uma minoria de
profissionais desinteressados e irresponsáveis não pode manchar a reputação de
tanta gente dedicada. Não fosse o trabalho abnegado de médicos, enfermeiras,
atendentes e outros profissionais da saúde que carregam nas costas a
responsabilidade de atender os mais humildes, o SUS sequer teria saído do
papel.
A saúde no Brasil é carente de financiamento e de métodos
administrativos modernos que lhe assegurem eficiência e continuidade.
Reformar esse mastodonte desgovernado, a um só tempo
miserável e perdulário, requer muito mais do que simplesmente importar médicos:
é tarefa para estadistas que enxerguem um pouco além das eleições do próximo
ano.
Drauzio Varella é
médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital
do Câncer. Foi um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho
em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro "Estação
Carandiru" (Companhia das Letras). Escreve aos sábados, a cada duas
semanas, na versão impressa de "Ilustrada".
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