TOMARA, MEU DEUS, TOMARA! (imperdível)
"Poucas coisas nos passam tão despercebidas quanto a nossa
própria vida. Entre o acordar e o deitar de todo dia, quase sempre gastamos as horas, os minutos, os segundos. Desperdiçamos, e não mais que isso, o que poderia ser um dia de vida plena. Raros experimentam o encantamento que é viver de verdade. A maioria, quando muito, apenas envelhece. Valendo-se, à guisa de muletas, do mal dizer, da ranzinzice, da insatisfação, do sempre olhar para o quintal do vizinho e achá-lo verde demais; do esperar, apática, por dias melhores (que nunca virão).
Na verdade, é mais fácil, requer menos esforço ser infeliz, viver pela metade. Porque para ser inteiro, para viver em completude é preciso de coragem e desapego. É preciso de um grau enorme de honestidade consigo mesmo. É preciso saber que é sua a vida, que é você o único responsável por ela, que está em suas mãos – e não nas de mais ninguém – a capacidade de ser feliz.
E é justamente aí que o nó aperta, admitamos. Não somos habituados a darmos conta da própria felicidade – ou da ausência dela. Sabemos, sim, vilanizar o chefe que, em tese, nos persegue; idealizar possibilidades de amor, que cada vez ficam distantes; reclamar das oportunidades que a vida nos nega; apegar-nos a passado utópico e idealizado enquanto postamos em redes sociais o prato sofisticado do almoço no fim de semana. Enfim, nos acostumamos a um simulacro, a arremedo de existência, enquanto o tempo corre irremediável e irreversível.
Antes que esta morte disfarçada em vida se torne absoluta, há tempo de virar o jogo. E é este o meu desejo. Que este Natal nos traga a possibilidade de VIDA real. Assim mesmo, toda em letra maiúscula e em negrito, como que gritando para acordar o mundo. Uma vida que pulse, que nos arranque das certezas, que nos jogue no olho do furacão; que nos exija, no espelho, a nudez de nossos desejos, fraquezas e ambições - frente a nós mesmos, o que é muito difícil e já será mais que suficiente.
Que a VIDA aproveite o nascimento de um certo nazareno e nos presenteie com seu dom maior: a coragem de viver, mas viver de verdade, integralmente. Uma coragem autêntica, daquelas que vêm com certidão registrada para provar sua validade, e que se desdobre em ações práticas, em decisões que mudem nosso cotidiano. Porque se assim não for, continuaremos no limbo do “fingir viver”, em que nos agarramos facilmente com tanta força até hoje.
Ah!, tomara a coragem de amar de verdade. E aceitar o outro com suas limitações e encantos – porque é tão difícil conviver com qualidades quanto com defeitos do ser que se ama.
Ah!, tomara o desapego do amor que não vingou. Porque é na serenidade do entender que não se é mais amado que reside a lucidez do amar de verdade. E é isso que a gente busca quando se dispõe a viver em completo: amar e ser amado verdadeiramente. Sem lugar para ilusões, nem suas consequentes desilusões.
Ah!, tomara a coragem de se saber infeliz com seu emprego e sair dele, porque não há meio de sustento que justifique o aniquilar-se dia após dia. E reclamar sistematicamente de tudo e todos só nos embaça mais ainda o olhar para o encanto da vida. Esta mesma que escorre mais rápido por nossas mãos quando dela não fazemos bom uso.
Que este Natal nos desperte para verdadeiramente nos apercebermos da vida e seus encantos. E que usufruamos dela. Que engordemos, que emagreçamos, que comecemos uma atividade física, que engravidemos, que paremos de fumar, que comecemos a beber vinho, que voltemos a estudar, que nos separemos, que beijemos muito na boca, que descubramos um novo amor, que assistamos ao por do sol, que mudemos de cidade, que respiremos melhor, que percamos o medo da morte...
Porque a morte não é o fim da vida. Para quem passou por aqui e não viveu de verdade talvez até seja. Já aqueles que viveram plenamente sabem que a morte é só mais uma etapa deste negócio complicado que a gente chama, quase sempre descuidadamente, de vida. E que é tão especial, ela, a própria vida, fique claro, tão maravilhosa, tão bonita, que merece ser plena, que merece ser absoluta, que merece ser vivida e celebrada a plenos pulmões. Como este Natal anuncia que será. Tomara, meu Deus, tomara! (JORNAL O POVO, EM 12/12)
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