SUSPEITA, SEGREDO E CRÍTICA
Alguns requisitos da democracia andam um
tanto esquecidos. Suspeita, segredo e crítica são alguns destes atributos
essenciais ao exercício do Estado de Direito e das liberdades. Tanto quanto a
representatividade do poder estes fatores são imanentes à doutrina democrática
e à soberania popular.
O segredo impede a soberania popular.
Como aprovar ou desaprovar aquilo que não se conhece? Não por acaso o art. 37
CR/88 enumera os princípios pelos quais se regem os atos da administração de
todos os entes públicos, entre os quais coloca a publicidade. Louis Dembitz Brandeis
(1856 – 1941), juiz da Suprema Corte dos EUA, prelecionou magistralmente sobre
a necessidade de afastar o enigmático, ao dizer que “o sol é o melhor
detergente”. Os atos processuais também observam – ou deveriam observar – o
princípio da publicidade (art.5, inc. LX da CR/88). O segredo de justiça é
exceção limitada aos processos de interesse estritamente particular, a exemplo
dos conflitos conjugais e de avença arbitral (CPC, art. 189). A suspeita do
inconfessável é indissociável do que permanece incógnito. Impessoalidade,
legalidade e moralidade, princípios também elencados no artigo citado, da
Constituição, não podem prescindir da publicidade que os protege e que são inseparáveis
da democracia.
A suspeita é ontologicamente ligada ao
regime democrático. Mandatos políticos têm prazo de validade. Suspeita-se de
propósitos continuístas. Reeleições são limitadas ou até vedadas pelo mesmo
motivo. Competências são retalhos de poder que constituem limites. Suspeita-se
de possível abuso de poder de autoridade. Suspeição, impedimento, distribuição
aleatória dos processos e inércia da magistratura decorrem da suspeita de que o
poder corrompe e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta, conforme
palavras do Lord John E. E. Dalberg-Acton (1834 – 1902). O princípio da
separação das funções do poder proposto por Charles-Louis de Secondat, barão de
La Brède e de Montesquieu (1689 – 1755), que resulta no sistema de freios e contrapesos
adotado pelos constituintes dos EUA, também é a expressão da suspeita que recai
sobre o poder nas democracias
A democracia começou a germinar quando
os gregos, na Antiguidade Clássica, resolveram substituir o uso da força pelo
debate de ideias no processo decisório dos negócios da polis, conforme Olivier Nay
(1968 – viva). Não há debate sem liberdade de expressão. Não há liberdade de
expressão sem liberdade de crítica. Não pode haver democracia sem as liberdades
negativas que protegem as liberdades dos cidadãos. Estas liberdades só podem
ser limitadas por lei em sentido estrito, conforme o princípio da reserva
legal, positivado na CR/88, art. 5, inc. II “Ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. A honra das pessoas,
tanto objetiva como subjetiva, está protegida contra os abusos da liberdade de
expressão e de crítica pelos tipos penais de calúnia (art. 138 do CPB),
difamação (art. 139 do CPB) e injúria (art. 140 do CPB). A ameaça também é
tipificada como crime (art. 147 do CPB). Tais crimes são apenados com detenção,
nenhum deles com reclusão, que admite regime de execução inicialmente fechado.
Só o artigo 138 não admite multa como alternativa a detenção.
Ninguém está acima da
crítica, especialmente quem exerce função pública. As instituições não se
confundem com as pessoas naturais que ocupam cargos nelas. Criticar o piloto de
Boeing não se confunde com a crítica ao modelo de avião fabricado pela empresa
citada. Quem foge da crítica se ocultando sob o manto do sigilo; procura se
confundir com a instituição a que serve; criminaliza crítica não tipificada
como crime, a exemplo de “crime de ódio” ou “fake news”; ou “suspeitar de
autoridade” está enganado ou está engando. Tratando-se de um leigo pode ser um
equívoco perdoável. Tratando-se de quem sabe o que diz
recai a suspeita legítima de que esteja enganando.
Fortaleza, 6/5/22.
Rui Martinho Rodrigues.
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