Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

OS SONÂMBULOS - Fortaleza, 9/1/2020. Rui Martinho Rodrigues.


Guerras e rumores de guerras enchem os noticiários, intensificados com os recentes acontecimentos no Oriente Médio. As partes envolvidas nos conflitos da região têm muito a perder num confronto direto. Os maiores protagonistas têm consciência disso. Não querem uma conflagração direta com os rivais. A confrontação indireta, por procuração dada aos seus aliados menores é o caminho escolhido. Mas envolve riscos. Erro de cálculo e aprisionamento dos líderes pela retórica de palanque pode arrastá-los ao embate que não querem. A complexidade, em um conjunto de fatores aumenta a possibilidade de erro, disse Steve Hawking, 1942 – 2018, referindo-se a uma eventual catástrofe.
A perda de controle dos acontecimetos é recorrente na História. Temos um quadro de poder multipolar, com potências da região e extrarregionais; muitos estados e movimentos políticos não estatais. Quanto mais atores maior a dificuldade de controlar a situação. Cálculo racional de interesses geoestratégicos, paixão política e religiosa e discurso de apelo emocional; um emaranhado de alianças episódicas; lideranças não qualificadas; e disputa pela primazia da liderança regional e mundial complicam a situação. Inovações tecnológicas podem desequilibar o poder e criar o sentimento de urgência para aproveitar a vantagem relativa antes que ela se perca.
A analogia da presente situação do Oriente Médio com a crise que resultou na IGM é impressionante. Havia, em 1914, a ideia de que uma guerra generalizada na Europa era improvável. As trocas comerciais se intensificavam. A versão sobre concorrência entre potências industriais não vai além de um aspecto secundário. Os prejuízos da guerra seriam, como foram, muito maiores do que os da competição industrial. Os balcãs eram uma região de importância secundária. O golfo Pérsico, grande fonte de petróleo, perde a cada dia a importância pelo advento das novas fontes de energia e pela crescente produção de hidrocarbonetos fósseis em outras regiões. O argumento da guerra para tomar petróleo falece diante do fato de que é muito mais caro tomar do que comprar o produto, como ficou evidente nas guerras anteriores. O interesse na venda de armas é real, mas encontra obstáculo na recessão e nos prejuízos para o desenvolvimento de armas sofisticadas, sem uso nas guerras com pequenas potências, a exemplo das conflagrações com o Iraque, Afeganistão e Vietnã. A cegueira de líderes, em 1914, foi descrita por Christopher Clark (1960 – vivo) na obra “Os sonâmbulos”. O sonambulismo é uma alusão a incapacidade de compreender a realidade, por parte dos envolvidos na crise.
O nacionalismo é tóxico. Pode gerar guerra. A paixão religosa habilmente explorada é explosiva. Erro de cálculo, de um lado, sob a forma de passividade diante do ataque às instalações petrolíferas sauditas e aos petroleiros britânicos; do outro lado ao pensar que a passividade do adversário se prolongaria. Manobrar organizações e grupos não estatais, nas guerra por procuração, pode sair de controle. A imprevisibilidade de líderes, somada às bravatas de palanque podem forçar a marcha da insensatez descrita por Barbara Tuchman (1912 – 1989). A aparente solução da crise precedeu a tempestade, em agosto de 1914, encorajou a intransigência da Sérvia, que havia prometido entregar os assassinos do herdeiro da monarquia dual, mas recuou do acordo com o Império Austro-Húngaro. Este apenas esperava passar a colheita para convocar os reservistas que estavam no campo. Crise superada ou pausa na marcha da insensatez: o que temos?
Fortaleza, 9/1/2020.
Rui Martinho Rodrigues.

Nenhum comentário: