Conservatória,
a capital da seresta
Januário Bezerra
Vem de longe a tradição boêmia do
Rio de Janeiro, em oposição a São Paulo, onde a palavra de ordem é o trabalho:
“São Paulo não pode parar!...” eis o que por muito tempo marcou a linguagem
corrente do paulistano. Para alguns, o carioca trabalha para viver; outros
garantem: o paulistano vive para trabalhar. Esse jeito de pegar leve em tudo
que faz transparece para além dos limites da cidade do Rio de Janeiro,
abrangendo todo o território fluminense. O município de Valença, por exemplo, no
limite com Minas Gerais, tem um dos mais tradicionais centros de cultura
musical do Brasil. A história conta que, no período de 1860 a 1880, com o
desenvolvimento de Conservatória, hoje distrito municipal, devido às grandes
lavouras de café e ao escoamento das produções de Minas
Gerais, a influência da corte trouxe para a Vila alguns
professores de música, principalmente de piano e violino, instrumentos que a alta sociedade desfrutava àquela época.
Daí, sabe-se que professores de música como Venâncio da Rocha Lima Soares,
Carlos Janin, Geth Jansen e Andréas Schmidt ficaram famosos, principalmente
este último, que era virtuoso no violino. Os artistas da corte vinham
periodicamente a Conservatória fazer saraus, quando alegravam as famílias dos
nobres que habitavam a região. Esses artistas, em noites enluaradas se reuniam
na Praça da Matriz, ao lado do chafariz, do poste de luz a querosene e dos
bancos da praça e faziam uma verdadeira serenata aos fazendeiros, barões e suas
famílias; e o povo se postava à distância assistindo e aplaudindo. O tempo sedimentou o costume,
hoje transformado nas tradicionais serestas que acontecem em Conservatória e
também na sede do município. É o
sexto distrito de Valença, a 370 quilômetros de São Paulo, 142
do Rio de Janeiro, 28
de Barra do Piraí e a 34 da sede municipal. O distrito tem uma população de 4.182
habitantes, de acordo com o Censo 2010 do IBGE.
Pedro Quinane, um dos baluartes
da capital da seresta, nos fez inteirados de como tivera origem a célebre
música Arranhacéu, da dupla Silvio Caldas e Orestes Barbosa. O Caboclino
Querido, como sempre foi chamado pelo Brasil inteiro, estava cantando na Rádio
Nacional, quando chega Orestes Barbosa e se põe a ouvi-lo, em companhia de uma
jovem com quem tentou o flerte, em atitude aparentemente sem maiores
consequências. Ao final, já no térreo do edifício, a moça prometeu ir em casa, no
“arranhacéu” onde morava próximo à emissora, para se trocar; e em companhia do
poeta, iria participar de um sarau a que ele comparecia com habitualidade. A
ninfeta subiu para o apartamento e não mais retornou, deixando o paquera a
esperá-la indefinidamente. Desapontado, Orestes ruma para o bar no bairro da
Lapa onde encontrou Silvio Caldas; e, com ele, comentou o episódio responsável
por todo o desapontamento. Logo depois, o poema escrito por Orestes Dias
Barbosa e a melodia composta por Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas já
constituíam a canção Arranhacéu, que diz: “Cansei de esperar por ela/Toda noite na
janela/Vendo a cidade a luzir/Nestes delírios nervosos/Dos anúncios
luminosos/Que são a vida a mentir/E cada vez que subia/O elevador não
trazia/Essa mulher, maldição/E quando lento gemia/O elevador que descia/Subia o
meu coração/Cansei de olhar os reclames/E disse ao peito não ames/Que o teu
amor não te quer/Descansa, fecha a vidraça/Esquece aquela desgraça/Esquece
aquela mulher/Deitei-me então sobre o peito/Vieste em sonho ao meu leito/E eu
acordei, que aflição/Pensando que te abraçava/Alucinado apertava/Eu mesmo meu
coração”.
Outro
episódio digno de nota envolve mais uma criação da mesma dupla, que na opinião
de Manuel Bandeira alcançou o ponto alto da poesia brasileira:
Sob frondoso pé de oiti, em frente ao Café Nice, no Rio de Janeiro,
Orestes Barbosa com um papel na mão aborda Silvio Caldas e aí se estabelece curioso
diálogo:
− Esta canção, Sílvio, não é pra musicar nem pra gravar.
− Por quê, Orestes?
− Porque é um decassílabo; e o povo só canta quadra ou
sextilha.
Não sendo Silvio Caldas um perito na técnica da versificação,
o poeta resolve cantarolar para o parceiro os primeiros versos de uma valsa da
dupla, na tentativa de lhe mostrar a diferença entre sextilha e decassílabos:
“Vou me mudar
soluçante/Do apartamento elegante/Que tem do antigo fulgor/Lindos biombos ornados/De
crisântemos dourados /Cenário do nosso amor”
Sílvio Caldas põe no bolso o novo poema de Orestes, e sai encantado com
a primeira leitura feita da obra ainda sem título, notadamente com a segunda
estrofe, que diz:
“Meu
barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou”
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou”
Em São Paulo, onde fora morar com dezesseis para dezessete anos, Sílvio
de tornou amigo íntimo do poeta Guilherme de Almeida, a quem habitualmente
concedia a primeira audiência das suas criações artísticas. Entusiasmado com o
que acabara de ouvir do seresteiro carioca, que a seu pedido interpretara já
pela segunda vez a novidade mostrada, Guilherme quis saber o título.
Aproveitando um verso da canção, Sílvio Caldas respondeu que o titulo da música
seria “A Sonoridade que Acabou”. Guilherme de Almeida, em atitude reflexa, foi
peremptório:
− De hoje em diante, essa música linda há de se chamar “Chão de
Estrelas”.
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