Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Conservatória, a capital da seresta

Conservatória, a capital da seresta

Januário Bezerra
Vem de longe a tradição boêmia do Rio de Janeiro, em oposição a São Paulo, onde a palavra de ordem é o trabalho: “São Paulo não pode parar!...” eis o que por muito tempo marcou a linguagem corrente do paulistano. Para alguns, o carioca trabalha para viver; outros garantem: o paulistano vive para trabalhar. Esse jeito de pegar leve em tudo que faz transparece para além dos limites da cidade do Rio de Janeiro, abrangendo todo o território fluminense. O município de Valença, por exemplo, no limite com Minas Gerais, tem um dos mais tradicionais centros de cultura musical do Brasil. A história conta que, no período de 1860 a 1880, com o desenvolvimento de Conservatória, hoje distrito municipal, devido às grandes lavouras de café e ao escoamento das produções de Minas Gerais, a influência da corte trouxe para a Vila alguns professores de música, principalmente de piano e violino, instrumentos que a alta sociedade desfrutava àquela época. Daí, sabe-se que professores de música como Venâncio da Rocha Lima Soares, Carlos Janin, Geth Jansen e Andréas Schmidt ficaram famosos, principalmente este último, que era virtuoso no violino. Os artistas da corte vinham periodicamente a Conservatória fazer saraus, quando alegravam as famílias dos nobres que habitavam a região. Esses artistas, em noites enluaradas se reuniam na Praça da Matriz, ao lado do chafariz, do poste de luz a querosene e dos bancos da praça e faziam uma verdadeira serenata aos fazendeiros, barões e suas famílias; e o povo se postava à distância assistindo e aplaudindo. O tempo sedimentou o costume, hoje transformado nas tradicionais serestas que acontecem em Conservatória e também na sede do município. É o sexto distrito de Valença, a 370 quilômetros de São Paulo, 142 do Rio de Janeiro, 28 de Barra do Piraí e a 34 da sede municipal. O distrito tem uma população de 4.182 habitantes, de acordo com o Censo 2010 do IBGE.
Pedro Quinane, um dos baluartes da capital da seresta, nos fez inteirados de como tivera origem a célebre música Arranhacéu, da dupla Silvio Caldas e Orestes Barbosa. O Caboclino Querido, como sempre foi chamado pelo Brasil inteiro, estava cantando na Rádio Nacional, quando chega Orestes Barbosa e se põe a ouvi-lo, em companhia de uma jovem com quem tentou o flerte, em atitude aparentemente sem maiores consequências. Ao final, já no térreo do edifício, a moça prometeu ir em casa, no “arranhacéu” onde morava próximo à emissora, para se trocar; e em companhia do poeta, iria participar de um sarau a que ele comparecia com habitualidade. A ninfeta subiu para o apartamento e não mais retornou, deixando o paquera a esperá-la indefinidamente. Desapontado, Orestes ruma para o bar no bairro da Lapa onde encontrou Silvio Caldas; e, com ele, comentou o episódio responsável por todo o desapontamento. Logo depois, o poema escrito por Orestes Dias Barbosa e a melodia composta por Sílvio Narciso de Figueiredo Caldas já constituíam a canção Arranhacéu, que diz: Cansei de esperar por ela/Toda noite na janela/Vendo a cidade a luzir/Nestes delírios nervosos/Dos anúncios luminosos/Que são a vida a mentir/E cada vez que subia/O elevador não trazia/Essa mulher, maldição/E quando lento gemia/O elevador que descia/Subia o meu coração/Cansei de olhar os reclames/E disse ao peito não ames/Que o teu amor não te quer/Descansa, fecha a vidraça/Esquece aquela desgraça/Esquece aquela mulher/Deitei-me então sobre o peito/Vieste em sonho ao meu leito/E eu acordei, que aflição/Pensando que te abraçava/Alucinado apertava/Eu mesmo meu coração”.
Outro episódio digno de nota envolve mais uma criação da mesma dupla, que na opinião de Manuel Bandeira alcançou o ponto alto da poesia brasileira:
Sob frondoso pé de oiti, em frente ao Café Nice, no Rio de Janeiro, Orestes Barbosa com um papel na mão aborda Silvio Caldas e aí se estabelece curioso diálogo:
− Esta canção, Sílvio, não é pra musicar nem pra gravar.
− Por quê, Orestes?
− Porque é um decassílabo; e o povo só canta quadra ou sextilha.
Não sendo Silvio Caldas um perito na técnica da versificação, o poeta resolve cantarolar para o parceiro os primeiros versos de uma valsa da dupla, na tentativa de lhe mostrar a diferença entre sextilha e decassílabos:
“Vou me mudar soluçante/Do apartamento elegante/Que tem do antigo fulgor/Lindos biombos ornados/De crisântemos dourados /Cenário do nosso amor”

Sílvio Caldas põe no bolso o novo poema de Orestes, e sai encantado com a primeira leitura feita da obra ainda sem título, notadamente com a segunda estrofe, que diz:
“Meu barracão no morro do Salgueiro
Tinha o cantar alegre de um viveiro
Foste a sonoridade que acabou
E hoje, quando do sol, a claridade
Forra o meu barracão, sinto saudade
Da mulher pomba-rola que voou”
Em São Paulo, onde fora morar com dezesseis para dezessete anos, Sílvio de tornou amigo íntimo do poeta Guilherme de Almeida, a quem habitualmente concedia a primeira audiência das suas criações artísticas. Entusiasmado com o que acabara de ouvir do seresteiro carioca, que a seu pedido interpretara já pela segunda vez a novidade mostrada, Guilherme quis saber o título. Aproveitando um verso da canção, Sílvio Caldas respondeu que o titulo da música seria “A Sonoridade que Acabou”. Guilherme de Almeida, em atitude reflexa, foi peremptório:
− De hoje em diante, essa música linda há de se chamar “Chão de Estrelas”.


    

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