Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

quarta-feira, 10 de junho de 2020

NOSSOS COMERCIAIS, POR FAVOR


NOSSOS COMERCIAIS, POR FAVOR



Num desses calendários de eventos  -- de que há muitos por aí --  registra-se que o dia 10 de junho é o Dia da Língua Portuguesa. Talvez fosse, digamos, mais “lucrativo” esquecer a Língua nesse dia e cuidar melhor dela nos outros 364. Porque não é brincadeira a quantidade dos erros que se veem por aí, sobretudo nos espaços que, ainda quando grandes, abrigam pequeno número de palavras, como os outdoors, faixas, cartazes, murais e, entre outros, os espaços publicitários em jornais, sem falar nos espaços da mídia eletrônica (rádio, televisão, Internet).



I

À maneira de Carlos Drummond de Andrade, no seu “Poema da Necessidade”, também conclamamos: É preciso salvar a Língua Portuguesa.



II

Tenho ouvido comentários acerca dos erros de ortografia que são vistos às dezenas em placas, letreiros e publicidade de estabelecimentos comerciais, industriais, diversionais etc. Os erros garrafais, de pé e meio, alastram-se por todos os espaços, meios e em todos os suportes, mandando Camões e Bilac aos infernos, numa clara tentativa de mostrar que nem só de buracos estão cheias as ruas das cidades ou as contas dos governos.



III

Vivemos comprando MIUDESAS com “S” e EMFEITES com “M” no atacado e no AVAREIJO (sic). Os TOCA DISCOS e TOCA FITAS nos vêm faltando os hifens. Só nos vendem televisores A CORES (eu prefiro EM CORES  --  a imagem é melhor). Temos depósitos FEICHADOS; a eletricidade vem a nós, trazendo o vosso reino, por meio de fios de alta TENÇÃO. Anunciam BOLÇAS (com cê-cedilhado), o que é uma barbaridade (melhor, uma “bolçalidade”).



IV

Nossa GAZOLINA já vem aditivada, com a mistura de um novo elemento: um inescusável “Z”, que não modifica o preço do combustível e é irmão gêmeo do que aparece em nossas UZINAS, como se fosse a temível marca do Zorro, o “mocinho” de capa e espada.



Algumas de nossas casas noturnas teimam em se assinar BOYTES, com um descabido “Y” ali, no meio, metidão... Ou seja: nem a aportuguesada “boate” nem a francesa boîte, únicas grafias admissíveis, têm vez. De alguma validade, mas sem nenhuma melodia, são os CONCERTOS em “C” maior regidos por muitas oficinas em nossos rádios, relógios e veículos. E o ENRROLAMENTO de motores, com dois “RR”, demonstra que o trabalho é enrolado, mesmo. Também temos casas ESPECIALISADAS (com “S”) em TÚMOLOS, JASIGOS e MAUSOLÉOS (e, de quebra, já ficamos sabendo onde metade do idioma de Rui Barbosa foi enterrado).



V

Em uma exposição agropecuária vi, em faixas e aos feixes, os inúmeros lapsos ortográficos, balouçando candidamente acima do gado e um pouco abaixo do poeirão. De cara, a acolhida: “Sejam BENVINDOS” (não sei os outros, mas eu não sou Benvindo). De costas, o convite: “Venham ver a VAQUEIJADA” (talvez porque a vaca dá o leite e o leite dá o queijo). Endereçado a uma autoridade, o pedido: “REALISE nossos sonhos, LEGALISE nossas terras”. Está claro que, com “S”, só se realizam (só se escrevem) sonhos e a legalização enfrenta um caminho mais tortuoso, pelo menos gramaticalmente.



VI

“Assim também é demais”, lamentava-se Sebastião Jorge no “Mirante”, antigo suplemento de O Imparcial; “é maltratar muito um Estado como o nosso que um dia foi conhecido por ‘Atenas Brasileira’, tão rica a sua cultura e extraordinários os seus ilustres personagens...” E o Bastião relembra: “Tínhamos a fama de melhor falar o português, o que não deixara de ser um orgulho à nossa gente, que procurava se esmerar na gramática para não escorregar, facilmente, em casca de banana de que tanto falou o impiedoso crítico Agripino Grieco.”



VII

E haja casca de banana... E o que fazer para evitar tamanhos deslizes? Dar o peixe ou ensinar a pescar? E de quem a iniciativa, a preocupação, os cuidados? Existe um culpado?



Pedir mais cautela, mais tato... o desasseio linguístico existe. Em todo lugar. Bebemos PITÚ e CARACÚ, sem que elas percam o acento nem o gosto de bebidas, “pois se existe enorme burocracia para o registro de uma marca de cachaça, não existe qualquer respeito e amor à ‘Última Flor do Lácio’”  --  como bem observou o douto professor e particular amigo Cid Teixeira de Abreu (in memoriam).  “Também pudera!  -- continua ele --. Um povo que só se preocupa em importar modismos, que usa roupa de veludo em nosso clima (é chic!), que canta música americana sem saber traduzir uma palavra (é pop!), não tem tempo de pensar nessas coisinhas do instrumento que ainda usa!”



VIII

Creio que às casas de pintura, às agências de propaganda, aos birôs de comunicação cabem, em grande parte, a responsabilidade pelo que é dito e escrito, a qualidade do que é exposto. Vamos ver (e ouvir) até onde chega o cuidado com a Língua nos dizeres e falares das faixas, cartazes, folhetos, murais, placas, tabuletas, letreiros, rodapés etc. etc.



Alguém se conscientizará de que esse cuidado também é necessário. Senão, só restará que um senhor de crescida barba e longos cabelos brancos diga, na criação de outro mundo: “Que surja a Fala!” E a Fala brotará dos lábios. E a Fala será divina, culta e bela. E essa Fala se escreverá de “A” a “Z”. E a nova fala das divindades e dos homens será a Língua Portuguesa.



Porque Deus é brasileiro.



Assim seja.                                                                      





(Edmilson Sanches, em 1979)

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