DEMOCRACIA
Unanimidades sobre conceitos bem
determinados são raras. Concordâncias amplas são facilitadas por conceitos
indeterminados. Democracia é de aceitação geral. Pode ser entendida dos mais
variados modos. Winston Churchill (1874 – 1965) teria dito que o regime
democrático é o pior, afora todos os outros. Explicou assim a ampla aceitação.
Inicialmente democracia era a aceitação
da vontade da maioria nas questões valorativas. Não envolvia juízo de
realidade. Não se fazia votação para resolver problemas técnicos ou definir
realidade objetiva. Não havia hierarquia de consciência separando
“esclarecidos” e “alienados”. O fundamento da igualdade do voto, séculos
depois, seria formulado com clareza por John Locke (1632 – 1704), com o
argumento do falibilismo: ninguém é infalível, nem os “esclarecidos”. Todos estão
nivelados por baixo no concernente a juízos de valor. Nem é preciso lembrar que
até juízo de realidade desfruta apenas de validade transitória (Karl Popper,
1902 – 1994) e deve observar o falibilismo. Chegamos ao princípio “um homem, um
voto”. O falibilismo também ampara o princípio da alternância dos grupos
políticos no poder. A resistência dos “esclarecidos” diante da vitória dos
“alienados”, consagrados nas urnas, resulta da presunção de superioridade moral
e cognitiva. A “vedação ao retrocesso”, em nome da preservação dos direitos
sociais pretende manietar o legislador do futuro. Pressupõe a posse de uma
verdade absoluta. É semelhante a doutrina da soberania limitada, de Leonid
Ilitch Brejnev (1906 – 1982), que justificou a invasão da Tchecoslováquia como
forma de evitar o retrocesso daquele país.
A ilusão de superioridade moral e
cognitiva dos intelectuais, apresentada por Platão (428 a.C.– 348 a.C.),
prestigiou a hierarquia de consciências, ignorando a diferença entre a cognição
dos juízos de realidade e os juízos de valor. Admitindo-se a existência dos
“esclarecidos”, sem que os interesses e paixões interfiram na consciência dos
“sábios”, chegamos a sofocracia. Democratas que admiram “A república” de Platão
certamente defendem algum tipo de democracia adjetivada.
Conceito indeterminado, disponível para
todo gosto, a democracia tornou-se um fundamento “incontestável” para as mais
diversas ideias. A expansão do que se entende por bem público é uma dessas ideias
amparadas por alguma democracia adjetivada. Tal expansão “publicizou” o Direito
privado. O Direito público tem como princípio que tudo que não é expressamente
autorizado é proibido. O direito privado considera permitido tudo o que não é
expressamente proibido. A expansão do interesse público restringe a liberdade
de agir e fazer. Como prêmio de consolação a ”democracia ampliada” oferece a
liberdade de ser. A dimensão ôntica não se subordina aos ditames da política ou
do poder governamental. O contorcionismo teórico inventou a liberdade de ser. Transformou,
para tanto, a filogênese e a ontogênese em fenômenos puramente culturais, de
total plasticidade, tese quase sempre oculta nas entrelinhas do discurso.
A teoria da origem
violenta do Estado coloca a correlação de forças, não o voto, como fundamento
do poder político. O voto, a vontade da maioria “alienada”, argumentos
valorativos ou de natureza técnica são afastados pela correlação de forças. A
gênese da legitimidade, no dizer de Norberto Bobbio (1909 – 2004), está na
simbiose entre a política e o Direito, não apenas na correlação de forças, se o
Direito é fato valor e norma (Miguel Reale, 1910 – 2006) e a política é escolha
valorativa da maioria. Os “esclarecidos” buscam a legitimidade nas teorias
eivadas de malabarismos teóricos.
Porto Alegre, 23/10/21.
Rui Martinho Rodrigues.
Nenhum comentário:
Postar um comentário