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e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Márcio Catunda e os poetas de Paris - Batista de Lima

 

Márcio Catunda e os poetas de Paris

 

Batista de Lima

 

Ler Paris e seus poetas visionários, Imprece, 2021, de Márcio Catunda, é transitar por 478 páginas que são ruas parisienses em que 24 poetas desfilam pela escrita exuberante desse escritor e diplomata. A ordem cronológica como cada um aparece no livro nos leva como primeiro contato a François Villon, o "rei dos menestréis", nascido em 1431. Logo em seguida nos aparece Pierre de Ronsard, 1524, cantor da "brevidade da volúpia e da fragilidade da vida".

Pungente é a história de vida desse poeta André Chénier, 1762, autor de poemas bucólicos e elegias, executado pela guilhotina aos 32 anos. Ao contrário, Vitor Hugo, 1802, durou 83 anos e bastaria ter escrito seu brilhante romance Notre-Dame de Paris para se imortalizar, mas sua vasta obra ainda conta com o clássico Os Miseráveis. Diferente de Vitor Hugo, Alfred de Musset, 1810, levou um vida dissoluta, libertina, byroniana, jogador e jogral, consumidor contumaz de absinto, cerveja e cigarro, teve muitas amantes, com destaque para George Sand, mulher determinada e emancipada para seu tempo. Vida parecida com a de Musset é a de Gerard de Nerval, 1808, que frequentava os ambientes mais sórdidos de Paris da época. Envolvendo-se com o que havia de pior na marginália, terminou se enforcando num poste em plena madrugada.

A essas alturas o leitor já questiona por que coloco apenas o ano de nascimento de cada poeta. É por considerar que todos eles apenas nasceram e não morrerão nunca. É o caso, por exemplo, de Théophile Guatier, 1811, que além de poeta foi muito mais um narrador de contos fantásticos. No livro ele antecede Charles Baudelaire, 1821, com o epíteto de "maldito" esse autor de Les fleurs du mal, varou o tempo com sua modernidade irreverente e vem servindo de avatar para gerações de poetas rebeldes, devassos e ultra românticos. Desenvolveu seu satanismo entre a melancolia e a raiva.

Lautréamont, 1846, que era registrado como Isidore Ducasse, ao escrever o assustador Cantos de Maldoror, foi considerado como o sucessor de Baudelaire. Desencarnou aos vinte e quatro anos devido à vida desregrada que levava, consumindo drogas e frequentando os ambientes mais marginais de Paris. Logo em seguida aparecem estudados ao mesmo tempo Verlaine, 1844, e Rimbaud, 1854. Com dez anos de diferença, mestre e discípulo, os dois se amaram e se odiaram. Frequentadores de ambientes libertinos e consumidores das drogas da época, tudo isso não impediu de surgir Une saison en enfer, em que Rimbaud mostrou sua genialidade poética.

Márcio Catunda quando escreve sobre Mallarmé, 1842, demonstra sua predileção sobre esse poeta. É que Stéphane Mallarmé era gregário e levou uma vida rodeada de amigos nas suas reuniões das terças-feiras. "Cantor do nada e da morte", desprovido de beleza física, esse poeta que revolucionou a linguagem poética, alcançou sua culminância literária ao produzir Un coup de dés. Ele é seguido pelo seu admirador Paul Valéry, 1871, poeta com discurso filosófico. Afirma o autor que seu hermetismo foi herdado de Mallarmé. Para conferir, é só ler La Jeune Parque.

Guillaume Apollinaire, 1880, se não fosse tão guloso por éter, ópio e haxixe em companhia de Alfred Jarry, Andre Gide e Paul Éluard, talvez tivesse passado dos 38 anos e vencido a gripe espanhola. Além de ter criado o termo "surrealista", seu romance pornográfico Les onze mille verges o mantém vivo entre seus leitores. Um dos seus principais companheiros de lances de cocaína, André Breton, 1896, em 1924 lançou seu Manifesto Surrealista e, logo em  seguida, a revista "La Révolution Surréaliste". Grande companheiro de Breton foi Paul Éluard (1845) que por conta da tuberculose se internou no sanatório de Clavadel, em que conheceu e se tornou amigo de Manuel Bandeira, ambos poetas que exercitaram a catarse lírica.

Louis Aragon, 1897, um dos pioneiros da escrita automática, surrealista, libertino, era poeta da fraternidade e da liberdade. Mesmo assim é grandioso seu romance Aurélien, além do fato de ter sido o poeta que mais cantou Paris. Quanto a Max Jacob, 1876, "professor de piano, varredor de lojas, astrólogo, cuidador de crianças, pintor, monge beneditino, místico e boêmico", era consumidor contumoz de ópio, haxixe e éter. Autor de La côte, chamam-no de fundador do druidismo. Ao se batizar aos 39 anos, culminou assim sua opção pela religião cristã e é chamado de "flaneur" de Montparnasse. Teve muitos amantes, mas de repente passou da penitência à boemia.

Antonin Artaud, 1896, teve meningite na infância que lhe deixou sequelas. A partir daí sua vida foi um rozário de extravagâncias e sofrimentos. Com neurastemia e sífiles hereditária, consumidor de ópio e heroína, dividiu sua genialidade como poeta e ator de teatro e cinema. Sua vida foi um calvário vivido em internações para receber choques elétricos, tudo registrado no seu livro Voyage au Pays des Tarahumaras. O fato de ter passado mais de uma década em manicômios para loucos, seus tratamentos dissiparam a frágil saúde que já portava. A história de vida de Artaud é uma das mais pungentes do livro.

Jean Cocteau, 1889, destaca-se pelo fato de ter exercitado todos os âmbitos da arte da palavra. Fica difícil lhe atribuir o gênero de sua predileção. Como poeta, escreveu La danse de Sophocle, Vocabulaire e Plaine-chant. Apesar de hostilizado por Breton e Soupault, pela homossexualidade, Cocteau tinha um enorme contingente de amigos intelectuais representativos de todos os tipos de artes. Se não fosse usuário contumaz de ópio, poderia ter ultrapassado os 74 anos de vida. Já Robert Desnos, 1900, ativista do surrealismo, exímio na escrita automática, publicou Deuil pour deuil. Tinha "obsessão pelo erotismo e pela ternura". Sofreu com as perseguições nazistas, se salvando, entretanto, de morrer em campos de concentração.

Philippe Soupault, 1897, formou com Breton e Aragon "o trio primevo do surrealismo, que Valéry apelidara de "les trois mosquetaires" é autor de Profils perdus e L'amitié. Quando esteve em Portugal e conheceu Fernando Pessoa, concluiu que o poeta português era "um homem torturado pela tristeza". Seu contemporâneo Francis Carco, 1886, curtiu à vontade a Belle Époque pariense com tudo de boemia que a cidade ofertava. Mesmo assim foi possível ser destacado "poeta, crítico de arte, romancista, contista, compositor e cantor". Escreveu muito, mas em termo de poesia, não se podem olvidar Romance de Paris e Petite Suite Sentimentale.

O penúltimo poeta a aparecer no livro de Márcio Catunda é Jaques Prévert, 1900, que com seu amor profundo pela cidade, os dois se confundem: Márcio e Jaques, Catunda e Prévert. O poeta parisiense, surrealista, o escritor cearense apaixonado pela cidade e pela escrita de seus poetas. Prévert fez muito bem a ponte entre poesia e cinema e sentiu as mesmas dores de sua cidade torturada por duas grandes guerras. Quando escreveu Paroles, o poeta falou pela voz da cidade. Finalmente Philippe Delaveau, 1950, da mesma geração de Márcio Catunda vem fechar o livro debruçado sobre Paris, olhando o sena lento, liquidamente passageiro como a vida. Ambos testemunham ainda hoje essa epifania que não se encerra.

Aqui, pois, o leitor se junta a Delaveau e Catunda para respirar as falas paridas de todas as coisas de Paris aqui citadas. Debruçado sobre essas 478 páginas, quem o ler se vê debruçado sobre Paris, com sua imagem refletida e se banhando nas águas do Sena para concluir que realmente a poesia é "a parte eterna do efêmero". Obrigado, Márcio Catunda, pela companhia nessa tão bela viagem, em que li Paris pelos seus olhos e pela paixão, que não são só seus mas desses 24 poetas visionários.

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