Márcio Catunda e os poetas de Paris
Batista
de Lima
Ler Paris e seus poetas
visionários, Imprece, 2021, de Márcio Catunda, é transitar por 478 páginas
que são ruas parisienses em que 24 poetas desfilam pela escrita exuberante
desse escritor e diplomata. A ordem cronológica como cada um aparece no livro
nos leva como primeiro contato a François Villon, o "rei dos
menestréis", nascido em 1431. Logo em seguida nos aparece Pierre de Ronsard,
1524, cantor da "brevidade da volúpia e da fragilidade da vida".
Pungente é a história de vida desse poeta André Chénier, 1762, autor de
poemas bucólicos e elegias, executado pela guilhotina aos 32 anos. Ao
contrário, Vitor Hugo, 1802, durou 83 anos e bastaria ter escrito seu brilhante
romance Notre-Dame de Paris para se imortalizar,
mas sua vasta obra ainda conta com o clássico Os Miseráveis. Diferente de Vitor Hugo, Alfred de Musset, 1810,
levou um vida dissoluta, libertina, byroniana, jogador e jogral, consumidor
contumaz de absinto, cerveja e cigarro, teve muitas amantes, com destaque para
George Sand, mulher determinada e emancipada para seu tempo. Vida parecida com
a de Musset é a de Gerard de Nerval, 1808, que frequentava os ambientes mais
sórdidos de Paris da época. Envolvendo-se com o que havia de pior na marginália,
terminou se enforcando num poste em plena madrugada.
A essas alturas o leitor já questiona por que coloco apenas o ano de
nascimento de cada poeta. É por considerar que todos eles apenas nasceram e não
morrerão nunca. É o caso, por exemplo, de Théophile Guatier, 1811, que além de
poeta foi muito mais um narrador de contos fantásticos. No livro ele antecede
Charles Baudelaire, 1821, com o epíteto de "maldito" esse autor de Les fleurs du mal, varou o tempo com
sua modernidade irreverente e vem servindo de avatar para gerações de poetas
rebeldes, devassos e ultra românticos. Desenvolveu seu satanismo entre a
melancolia e a raiva.
Lautréamont, 1846, que era registrado como Isidore Ducasse, ao escrever o
assustador Cantos de Maldoror, foi
considerado como o sucessor de Baudelaire. Desencarnou aos vinte e quatro anos
devido à vida desregrada que levava, consumindo drogas e frequentando os ambientes
mais marginais de Paris. Logo em seguida aparecem estudados ao mesmo tempo
Verlaine, 1844, e Rimbaud, 1854. Com dez anos de diferença, mestre e discípulo,
os dois se amaram e se odiaram. Frequentadores de ambientes libertinos e
consumidores das drogas da época, tudo isso não impediu de surgir Une saison en enfer, em que Rimbaud
mostrou sua genialidade poética.
Márcio Catunda quando escreve sobre Mallarmé, 1842, demonstra sua
predileção sobre esse poeta. É que Stéphane Mallarmé era gregário e levou uma
vida rodeada de amigos nas suas reuniões das terças-feiras. "Cantor do
nada e da morte", desprovido de beleza física, esse poeta que revolucionou
a linguagem poética, alcançou sua culminância literária ao produzir Un coup de dés. Ele é seguido pelo seu
admirador Paul Valéry, 1871, poeta com discurso filosófico. Afirma o autor que
seu hermetismo foi herdado de Mallarmé. Para conferir, é só ler La Jeune Parque.
Guillaume Apollinaire, 1880, se não fosse tão guloso por éter, ópio e haxixe
em companhia de Alfred Jarry, Andre Gide e Paul Éluard, talvez tivesse passado
dos 38 anos e vencido a gripe espanhola. Além de ter criado o termo
"surrealista", seu romance pornográfico Les onze mille verges o mantém vivo entre seus leitores. Um dos
seus principais companheiros de lances de cocaína, André Breton, 1896, em 1924
lançou seu Manifesto Surrealista e, logo em
seguida, a revista "La Révolution Surréaliste". Grande
companheiro de Breton foi Paul Éluard (1845) que por conta da tuberculose se
internou no sanatório de Clavadel, em que conheceu e se tornou amigo de Manuel
Bandeira, ambos poetas que exercitaram a catarse lírica.
Louis Aragon, 1897, um dos pioneiros da escrita automática, surrealista,
libertino, era poeta da fraternidade e da liberdade. Mesmo assim é grandioso
seu romance Aurélien, além do fato
de ter sido o poeta que mais cantou Paris. Quanto a Max Jacob, 1876,
"professor de piano, varredor de lojas, astrólogo, cuidador de crianças,
pintor, monge beneditino, místico e boêmico", era consumidor contumoz de
ópio, haxixe e éter. Autor de La côte,
chamam-no de fundador do druidismo. Ao se batizar aos 39 anos, culminou assim
sua opção pela religião cristã e é chamado de "flaneur" de
Montparnasse. Teve muitos amantes, mas de repente passou da penitência à
boemia.
Antonin Artaud, 1896, teve meningite na infância que lhe deixou sequelas.
A partir daí sua vida foi um rozário de extravagâncias e sofrimentos. Com
neurastemia e sífiles hereditária, consumidor de ópio e heroína, dividiu sua
genialidade como poeta e ator de teatro e cinema. Sua vida foi um calvário
vivido em internações para receber choques elétricos, tudo registrado no seu
livro Voyage au Pays des Tarahumaras.
O fato de ter passado mais de uma década em manicômios para loucos, seus
tratamentos dissiparam a frágil saúde que já portava. A história de vida de
Artaud é uma das mais pungentes do livro.
Jean Cocteau, 1889, destaca-se pelo fato de ter exercitado todos os
âmbitos da arte da palavra. Fica difícil lhe atribuir o gênero de sua
predileção. Como poeta, escreveu La
danse de Sophocle, Vocabulaire e
Plaine-chant. Apesar de hostilizado
por Breton e Soupault, pela homossexualidade, Cocteau tinha um enorme
contingente de amigos intelectuais representativos de todos os tipos de artes. Se
não fosse usuário contumaz de ópio, poderia ter ultrapassado os 74 anos de
vida. Já Robert Desnos, 1900, ativista do surrealismo, exímio na escrita
automática, publicou Deuil pour deuil.
Tinha "obsessão pelo erotismo e pela ternura". Sofreu com as perseguições
nazistas, se salvando, entretanto, de morrer em campos de concentração.
Philippe Soupault, 1897, formou com Breton e Aragon "o trio primevo
do surrealismo, que Valéry apelidara de "les trois mosquetaires" é
autor de Profils perdus e L'amitié. Quando esteve em Portugal e
conheceu Fernando Pessoa, concluiu que o poeta português era "um homem
torturado pela tristeza". Seu contemporâneo Francis Carco, 1886, curtiu à
vontade a Belle Époque pariense com tudo de boemia que a cidade ofertava. Mesmo
assim foi possível ser destacado "poeta, crítico de arte, romancista,
contista, compositor e cantor". Escreveu muito, mas em termo de poesia,
não se podem olvidar Romance de Paris
e Petite Suite Sentimentale.
O penúltimo poeta a aparecer no livro de Márcio Catunda é Jaques Prévert,
1900, que com seu amor profundo pela cidade, os dois se confundem: Márcio e
Jaques, Catunda e Prévert. O poeta parisiense, surrealista, o escritor cearense
apaixonado pela cidade e pela escrita de seus poetas. Prévert fez muito bem a
ponte entre poesia e cinema e sentiu as mesmas dores de sua cidade torturada
por duas grandes guerras. Quando escreveu Paroles,
o poeta falou pela voz da cidade. Finalmente Philippe Delaveau, 1950, da mesma
geração de Márcio Catunda vem fechar o livro debruçado sobre Paris, olhando o
sena lento, liquidamente passageiro como a vida. Ambos testemunham ainda hoje
essa epifania que não se encerra.
Aqui, pois, o leitor se junta a Delaveau e Catunda para respirar as falas
paridas de todas as coisas de Paris aqui citadas. Debruçado sobre essas 478
páginas, quem o ler se vê debruçado sobre Paris, com sua imagem refletida e se
banhando nas águas do Sena para concluir que realmente a poesia é "a parte
eterna do efêmero". Obrigado, Márcio Catunda, pela companhia nessa tão
bela viagem, em que li Paris pelos seus olhos e pela paixão, que não são só
seus mas desses 24 poetas visionários.
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