QUEM TEM MEDO DE VIRGÍNIA WOOLF
Edward Albee (1928 – 2016) é lembrado,
entre outras coisas, por ter contribuído para o que Riccotto Canudo (1877 –
1923) considerava a sétima arte, com “Quem tem medo de Virginia Woolf”. Os
diálogos deste filme desnudam o lado humano deplorável, camuflado pelas
aparências. Pode-se dizer o mesmo da política dos nossos dias. É a substituição
da hipocrisia, tributo que o vício paga à virtude, pelo escárnio ou desprezo
pela certidão, segundo palavras da ministra Cármen Lucia, que hoje parecem
esquecdas.
O debate sobre a apuração de votos em
eleições revela aspectos deploráveis. Primeiro por não explicitar que se trata
de um procedimento administrativo. Político é o ato do eleitor, que manifesta sua
vontade ao votar, merecendo a proteção do segredo. A apuração, como ato
administrativo que é, deve seguir o princípio da publicidade dos atos de
administração. Alega-se, como obstáculo, a despesa necessária para acoplar
impressora na urna eletrônica, enquanto se institui um fundo eleitoral de quase
seis bilhões de reais. Suspeita-se de um propósito golpista, recusando-se a
adotar o procedimento que retiraria o pretexto dos golpistas. Invoca-se a
inexistência de precedente de fraude, como se a impossibilidade de verificar
tal ocorrência fosse prova de sua inexistência. Ocorrem, entre outras coisas,
apagões durante a apuração, cujos efeitos sobre a totalização dos votos
desperta suspeitas.
Nenhum dos lados do debate notou: depois
da adoção do voto eletrônico surgiram maiorias inusitadas. Prefeitos e
governadores obtiveram até 80% dos votos válidos. É inescusável esqueçer que
Charles A. J. M. de Gaulle (1890 – 1970), no auge da popularidade, como herói
de guerra, obteve pouco mais de 60%; Juan D. Peron (1895 – 1974), voltando do
exílio, desfrutando de popularidade inigualável, também teve pouco mais de 60%.
Jânio da S. Quadros (1917 – 1992), o furacão eleitoral, não obteve nem 50% dos
votos. Getúlio D. Vargas (1882 – 1954) e Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902
– 1976) tiveram pouco mais de 40%. Vitórias com mais de 70% dos votos são
comuns sob ditaduras e agora na democracia à brasileira.
Alguns magistrados dizem que o sistema
eleitoral em vigor invulnerável. Alvíssaras! Conseguimos um feito que o
pentágono e a indústria bélica dos EUA não foram capazes de produzir. Mas há
divergências. Ministros do STF interromperam constantemente a exposição de um
perito que foi falar naquela corte sobre a insegurança da parte eletrônica do
sistema eleitoral atual. Tanto empenho dos ministros em dificultar a exposição
do perito sugere a pergunta: quem tem medo de Virginia Woolf ou do lobo mau?
A apuração é feita por
um pequeno número de pessoas no TSE. Não cabe invocar o argumento da confiança
nos togados. Democracia é o regime da desconfiança. Por isso os poderes são
limitados pela competência constitucionalmente definida; mandatos eletivos têm
prazo de validade; poderes fiscalizam e limitam uns aos outros. Quem tem medo
da publicidade dos atos administrativos? A confiança nos togados fica abalada
quando ministros de tribunais superiores fazem campanha política. A decisão
sobre sistemas eleitorais é decisão política, é competência política. O ministro
Luís Roberto Barroso disse que é preciso fazer alguma coisa para evitar que se
repita no Brasil a vitória dos conservadores, como aconteceu na Polônia. Depois
retratou-se. A retratação, todavia, não desmente o pensamento, mas a
inconveniência da sua revelação. A matéria poderá ser judicializada e o
ministro militante poderá julgá-la.
Fortaleza, 25/7/21.
Rui Martinho Rodrigues.
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