REMINISCÊNCIAS
Isolamento social, noticiários
monotemáticos e a inconveniência do convívio social incomodam até misantropos.
O distanciamento involuntário aborrece. Até viciados em leitura pensam nas
atividades sociais agora desaconselhadas. A percepção do tempo se transforma.
Horas escorrem preguiçosas. Pensamentos situados no fim de uma longa fila,
agora encontram espaço. O futuro, sempre insodável, tornou-se preocupante. A
incerteza adquiriu status de inquietação. Mnemosine, a musa da memória,
desperta a lembrança de Clio, sua filha e de Zeus, deusa da História, que tem
consigo uma trombeta e descreve os desafios vividos e as soluções sempre
encontradas. Não há limite para os sacrifícios antes do epílogo de suas
narrativas.
Mnemosne desperta reminiscências que
orientam o olhar para o outro extremo: o futuro e o encontro com o
inescrutável. O porvir pede a compreensão do passado, fechando o círculo. Em
uma vida testemunhamos transformações nos mais diversos campos. A volatilidade
do que Zygmunt Bauman (1925 – 2017) deu o nome de modernidade líquida,
transformou as atividades lúdicas infantis, como as bricandeiras de roda; o
jogo de pedras das meninas; o fura chão dos meninos. Cadeiras nas calçadas
quase desapareceram. Novelas do rádio foram extintas. Vendores de porta em porta
desapareceram. Referências culturais e identidades se dissolveram.
As novas tecnologias impactantes
superaram superaram as inovações de muitos séculos em uma só geração. Afastaram
ou atenuaram o perigo de algumas epidemias recorrentes, como varíola, sarampo,
parotidite, poliomielite, meningite e difteria. Mas chegaram outras, como zica,
chikungunya, dengue, AIDS, gripe asiática e gripe suína. Antibióticos,
antivirais e principalmente vacinas haviam nos proporcionado uma confortável
sensação de segurança.
No tempo de uma vida não muito longa
tivemos muitas crises políticas. Parlamentarismo, deposição de presidente, dois
impeachments, renuncia de um papa, revolução dos costumes, reforma ortográfica,
reformas do ensino e graves crises financeiras e econômicas. Experiências
históricas orientavam a busca de soluções em todas elas. Estrategistas estudam
história militar; economistas analisam crises passadas; sanitaristas aprendem
com a história das epidemias. Veio, porém, o inédito. “De repente do riso fez-se
o pranto/(...)/Fez-se do amigo próximo distante/(...)/De repente, não mais que
de repente” (Marcus Vinicius de Moraes, 1913 – 1980). A singularidade sem
precedente não se faz acompanhar de lições do passado. o despreparo diante dela
não é coisa de Macunaíma (Mário Raul Morais de Andrade, 1893 – 1945), que só
fecha a porta depois de roubado. Afaste-se o complexo de vira-lata (Nelson
Falcão Rodrigues, 1912 – 1980). O radicalmente novo não tem manual de
instrução.
A calamidade pública
facilita a corrupção, repondo o citado herói sem caráter no centro da cena.
Claude Lévy-Strauss (1908 – 2009) não estava inteiramente certo. Não só os
nossos trópicos são tristes. Foi o mundo todo que “de repente, não mais que de
repente” se fez triste”, perplexo e entrou em pânico. Subitamente, porém, a
trombeta de Clio anunciará a superação do infortúnio. Não sabemos os
sacríficios que encontraremos pelo caminho, mas a História tudo resolve, apesar
da corrupção que se aproveita do afrouxamento dos controles durante a
calamidade e da demagogia, forma decadente da democracia (Aristóteles, 385a.C –
323a.C). Invoca-se em vão o santo nome da ciência, como se no caso ela fosse
unívoca. Convém, todavia, na luta inescrupulosa pelo poder, seguir o caminho
proposto por Nicolau Maquiável (1469 – 1527): aparentar virtude.
Fortaleza, 18/4/20.
Rui Martinho Rodrigues.
Publicado no blog da
ACLJ e no Segunda Opinião.
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