O ARGUMENTO LIBERAL
Quem declara uma identidade política
pode aludir a diferentes conjuntos de concepções políticas. O socialismo tem
mil e uma faces. Conservadores também não têm unidade ideológica ou
programática. Liberalismo pode vir acompanhado de alguns adjetivos. Tanto para
os que se declaram liberais como para os seus críticos o conceito é
polissêmico. Liberalismo estritamente econômico é outra coisa: liberismo. Nos
limites destas reflexões examinaremos, em apertada síntese, o liberalismo
político.
John Locke (1632 – 1704) é um dos mais
destacados pensadores liberais. As fundações das suas concepções políticas são
o falibilismo e a defesa de três categoria de bens jurídicos: vida, liberdade e
patrimônio. Muitos confundem, inadvertidamente ou para desqualificar, confundem
bens jurídicos somente com bens materiais, como se Locke defendesse só o
patrimônio material.
O falibilismo é a compreensão de que
todo pensamento é susceptível ao erro. Assim, nas Cartas sobre a tolerância, o
autor citado adverte que as concepções religiosas, políticas e de toda espécie,
sendo sujeitas à falibilidade humana, não devem encarar a divergência como
absurdo, erro ou heresia. Daí a necessidade de convivência pacífica com as
concepções contrárias, já que estas podem estar certas e as nossas erradas. Isso
afasta a reengenharia social e antropológica. Só infalíveis querem criar um
novo homem criando uma nova sociedade, um mundo melhor, sem base em uma ciência
exata. Promessa maravilhosa serve para legitimar torpeza. O historiador Eric
John Ernest Hobsbawm (1917 – 2012), militante comunista, reconheceu este
argumento liberal como válido (O Novo século, Companhia das Letras, 2009).
A defesa da vida sustentada pelo
pensador liberal fortaleceu as ideias contrárias à pena de morte, encorajando a
tendência para restringir cada vez mais o seu uso. É um tema controverso.
Norberto Bobbio (1909 – 2004), na coletânea A era dos direitos, ressaltou a
tendência histórica para restringir o uso da pena capital. O Brasil é exemplo
dessa restrição, limitando-a aos casos de traição nacional em tempo de guerra.
Os liberais defendem a liberdade para
fazer e agir (José Guilherme Merquior, 1941 – 1991). Libertários, diversamente,
defendem a liberdade de ser. Disponibilizar a dimensão ôntica, colocando-a sob
o controle da volição do sujeito não é liberdade, mas voluntarismo. A essência
do ser não é disponível. A teoria do ser, em Aristóteles (384 aC – 322 aC.), é
a reunião de forma e matéria (matéria + forma= sínolo). Uma estátua equestre tem
forma (cavalo) e matéria (bronze).
A liberdade deve ter limite no direito
de outrem. O fundamento disso é uma Antropologia Filosófica segundo a qual o
homem se pertence. Mas não existe direito absoluto. Alguns bens jurídicos são
indisponíveis: vida, integridade física, liberdade e a dignidade da pessoa. Os
três primeiros são conceitos claramente delimitados. Dignidade, porém, é
indeterminado e por isso polêmico. A convivência pacífica exige que a
normatividade social defina os limites da liberdade. Isso distingue o
liberalismo de permissividade.
A normatividade social
precisa da proteção do Estado. Isso distingue o liberalismo de anarquismo. Autoridade
dos governantes deve ser consentida pelos governados e a liberdade de agir
encontra limite apenas na lei, não se subordinando às concepções de algum
pensador supostamente genial. A boa norma é aquela que limita o poder do mais
forte, do tipo que reprime roubo, homicídio, cobrança de impostos sem
autorização legal anterior e condenação sem o devido processo legal, contendo o
mais forte. O liberalismo é o governo das leis, não dos homens, não empondera
ninguém. As democracias liberais têm um histórico de sucessos e fracassos,
superando assim as fórmulas supostamente geniais que só colecionam fracassos.
A igualdade defendida
pelos liberais é a de oportunidades, não de resultados, abrangendo a igualdade
de alguns em algo (como as aposentadorias especiais e os direitos das minorias)
e de todos em algo, como a obrigação de obedecer a lei. Não sendo utópico, não
esconde o que fazer com a divergência e a oposição: tolerância quando não viole
a lei e as penas previamente definidas para o crime. Não é concebida para
anjos, afastando-se da República, obra de juventude de Platão (427/28 aC. –
347/47 aC.) e aproximando-se da obra As leis, obra de maturidade do autor
citado, na qual ele repudiou a República, dizendo que exigiria uma sociedade de
anjos, enquanto As leis seria uma fórmula política para uma sociedade de humana.
Porto Alegre, 6 de
fevereiro de 2019.
Rui Martinho Rodrigues.
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