05/05/2014 Augusto Nunes
às 8:36 \ Direto ao PontoNada como uma vaia depois da outra para abalar a fé dos devotos, emudecer o chefe da seita e tirar o sono da guardiã do rebanho
Nada como uma vaia depois da outra para embaralhar a partitura da ópera dos malandros, desafinar o coro dos contentes, tirar o sono dos sacerdotes da seita, emudecer o seu único deus, escancarar a indigência mental da guardiã do rebanho, abalar a fé do mais fanático devoto, induzir convertidos de aluguel a flertar com outros altares. Nada como uma vaia depois da outra para assombrar as madrugadas de quem até outro dia dormia contando votos da vitória no primeiro turno e acordava sonhando com a proclamação da república bolivariana.
As manifestações de rua de 2013 implodiram a farsa do Brasil Maravilha, mas os alvos dos protestos não foram identificados tão claramente quanto neste outono. Os destinatários das mensagens sonoras agora têm nome, sobrenome, endereço e filiação partidária. Cresce em progressão geométrica a imensidão de brasileiros que enxergam as coisas como as coisas são. Milhões de lesados descobriram que o bando acampado no coração do poder foi longe demais até para os padrões do País do Carnaval. E exigem mudanças imediatas.
Todos constataram que o governo lulopetista recruta e acoberta corruptos. Que a roubalheira impune agora é medida em bilhões de dólares. Que os ineptos e os larápios se associaram para enterrar em estádios padrão Fifa o dinheiro que poderia abrandar pavorosas carências no universo da saúde e da educação. Que as promessas não descem dos palanques. Constataram, enfim, que lidam há 12 anos com vendedores de nuvens e camelôs de si próprios.
Alheio às alterações na paisagem, o marqueteiro João Santana imaginou, depois de consumir uma semana na releitura de pesquisas recentes, que a curva descendente da candidata à reeleição seria invertida por outro comício eletrônico transmitido em cadeia nacional. Péssima ideia: a discurseira na véspera do Dia do Trabalho só serviu para comprovar que as cartas na manga acabaram, que as mágicas de picadeiro perderam o encanto e que truques outrora infalíveis ficaram subitamente grisalhos.
Habituada a conjugar impunemente os três verbos preferidos de Lula — mentir, tapear, distorcer —, Dilma soube tarde demais que o senador Aécio Neves e o ex-governador Eduardo Campos não deixariam nenhum embuste sem revide, nenhuma invencionice sem réplica. Dispostos a provar que a oposição voltou de vez das férias, os candidatos do PSDB e do PSB à sucessão presidencial assumiram o papel de porta-vozes dos descontentes.
Dilma garantiu, por exemplo, que “a inflação continuará rigorosamente sob controle”. Ouviu que não se pode continuar o que não começou. Ao “reafirmar o compromisso do governo com o combate incessante e implacável à corrupção”, foi convidada a suspender a guerra de extermínio movida contra quem se atreve a investigar patifarias bilionárias consumadas nas catacumbas da Petrobras. E a tentativa de responsabilizar a oposição pelos estragos na imagem da estatal soou como anedota improvisada por patriotas de galinheiro.
“Os brasileiros não aceitam mais a hipocrisia”, recitou no fim do comício. Não aceitam mesmo, reiteraram as comemorações do Primeiro de Maio em São Paulo. Pela primeira vez desde a fundação do PT em 1980, figurões do Partido dos Trabalhadores foram impedidos de discursar no Dia do Trabalho. O ministro Ricardo Berzoini e o prefeito Fernando Haddad, por exemplo, não conseguiram abrir a boca sequer no palanque da CUT, controlada desde sempre por pelegos companheiros. Lula e Dilma nem deram as caras por lá. Na tarde seguinte, obrigada a visitar a Expozebu, a presidente reencontrou em Uberaba — três vezes — as vaias das quais escapara na véspera.
Nas primeiras 72 horas de maio, João Santana aprendeu, entre outras lições sempre úteis, que o país que não é para amadores também trata sem clemência adivinhos de botequim. Confrontado com a epidemia de apupos (e com mais uma pesquisa atulhada de más notícias para o Planalto), ele certamente se lembrou da entrevista, concedida em dezembro de 2010, em meio à qual resolveu restaurar a monarquia, transformar o gabinete presidencial em sala do trono e coroar Dilma Rousseff.
“Como se trata de uma figura única, que uma nação precisa de séculos pra construir, a ausência de Lula deixa uma espécie de vazio oceânico”, ressalvou o marqueteiro do reino. Apesar disso, ou por isso mesmo, Dilma tinha tudo para transformar-se na herdeira que todo súdito pede a Deus. “A República brasileira não produziu uma única grande figura feminina, nem mesmo conjugal”, ensinou Santana. “O espaço metafórico da cadeira da rainha só foi parcialmente ocupado pela princesa Isabel. Dilma tem tudo para ocupar esse espaço”.
Em novembro de 2012, festejou o acerto da profecia. “Foi uma metáfora que está se cumprindo simbolicamente”, cumprimentou-se o imaginoso publicitário baiano. “Grandes camadas da população têm um respeito, uma admiração e um carinho tão sutil por Dilma que chega até a ser de uma forma majestática”. Os fatos já aposentaram faz tempo o professor de história e o vidente. O marqueteiro só sobreviverá se esquecer os escombros do trono e concentrar-se nas rachaduras do palanque.
Mas vai perder seu tempo se ceder à tentação de descobrir a cura da vaia. E acabará perdendo o emprego.
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