Seria tão bom, tão mais simples, se nossos problemas estivessem restritos à Copa e à Fifa…
Há um pensamento em voga entre nós: devíamos sabotar a Copa, torcer contra, colaborar para que “não haja” Copa. Isto seria a coisa cívica e correta a fazer – usar a Copa do Mundo no Brasil não para vender ao mundo uma imagem boa do país, mas, ao contrário, para revelar nossas mazelas, para admitir nossas iniquidades diante do planeta.
Isto seria um levante contra “tudo isso que está aí” – o maldito padrão Fifa que não conseguimos alcançar e que nos humilha; nossa incapacidade histórica de fazer qualquer coisa honestamente, sem cobrar ou pagar propina; a economia que não anda; nossa ineficiência estrutural e nossa leniência crônica que nunca cumprem o que promete, que perdem prazos e desrespeitam contratos; nossa falência como nação que não consegue andar para frente em tantos aspectos essenciais; nossa incompetência em superar essa fenda social profunda que nos divide há séculos em duas castas que se odeiam, às vezes em silêncio, às vezes nem tanto.
Mas sabotar a Copa funcionaria também como uma espécie de autoexpiação pública e mundial, transformando nossas questões nacionais, internas, num inesquecível fiasco global. Como se a Copa do Mundo deixasse de ser uma festa para virar uma chibata. Como se o maior evento do planeta, que nos foi confiado e que nós brigamos para receber, não representasse um momento de alegria mas sim uma oportunidade de gerar constrangimento, vergonha, decepção e má publicidade.
Sorrir virou uma assunção de cretinice. Torcer pelas cores nacionais na Copa virou um crime. Exercer o gosto pelo futebol, um traço nacional, virou coisa de gente pusilânime.
Ao mesmo tempo, ver o Brasil mal retratado na imprensa de outros países virou uma alegria. Passamos a gostar da ideia de esfregar nossos aleijões na cara da audiência internacional – tendo especial regozijo ao ver a classe média do resto do mundo virar de lado e tampar o nariz. Adoramos jogar lama no próprio rosto. E convidamos os outros a nos enlamear também. Estamos torcendo para que as coisas funcionem mal, e para que tudo dê errado, e para que não consigamos fazer nada direito, para que tragédias aconteçam, para que tudo mais vá para o inferno.
Estamos vibrando com a derrocada daquilo que mais odiamos. E o que mais odiamos parece ser o Brasil. Como se o Brasil não fôssemos, tão e simplesmente, nós mesmos.
Tenho muita dificuldade de entrar nessa onda de autoimolação. E na inconsequência juvenil dessa postura “quanto pior, melhor”. Há um niilismo contido nesse pensamento, e um masoquismo meio piegas e vazio nessa proposta, um espírito de porco oco e doentio, que me desagradam profundamente. Talvez porque haja muita destruição aí – e eu seja um construtor. Talvez porque haja muita coisa prestes a ser posta abaixo, indiscriminadamente, e eu seja um criador que gosta de erguer obras. Não sou um demolidor de paredes. Então não consigo achar que botar fogo no circo com todo mundo debaixo da lona possa ser uma boa ideia. Talvez por já ter vivido fora do país, e visto o Brasil lá de fora. E por ter dois filhos brasileiros, que terão seu futuro próximo acontecendo por aqui. E por já estar vivendo meu 43. ano de vida. Já estou muito velho para achar que arrasar a terra possa facilitar o nascimento de alguma outra coisa sobre ela.
Fico imaginando esse mesmo pensamento noutros países. Cito apenas alguns. Você completa o quadro.
Na Copa de 2002, o Japão deveria, logo na abertura, fazer menção a seus crimes de guerra, que não foram poucos, pelos quais jamais se desculpou. Ou então alertar para o tratamento discriminatório até hoje imposto aos burakumin – pessoas que exercem profissões “impuras”, como coveiros e açougueiros. Ou protestar contra a xenofobia, e o sentimento de isolamento (quando não de superioridade) racial que ainda hoje permeia a sociedade japonesa.
A Coréia, no mesmo ano, deveria denunciar seu patriarcalismo opressor e a violência doméstica contra mulheres que é uma espécie de direito adquirido dos homens por lá até hoje – quase 60% das esposas afirmam sofrer algum tipo de abuso dentro de casa.
Os Estados Unidos deveriam ter encerrado a Copa de 1994 com uma apoteose em forma de perdão pela barbaridade das duas bombas atômicas que atiraram covardemente sobre a população civil de duas cidades, em nome de um teste científico (afinal, gente amarela não é gente, né?) e de um aviso nuclear aos novos inimigos. Foram 250 000 mortos, entre crianças, mulheres, bebês, velhos, gestantes, recém nascidos. Ou então a apoteose deveria representar uma elegia às populações indígenas americanas massacradas. Ou aos mortos de todas as ditaduras que os Estados Unidos apoiaram ao longo de décadas, inclusive ensinando as melhores técnicas para “prender e arrebentar”, para vigiar e punir e esganar. Os Estados Unidos também poderiam se retirar da Copa, e também das Olimpíadas, bem como de todas as competições internacionais em que costumam brilhar, em protesto contra o fato de serem a maior economia do mundo e até hoje não terem tido a capacidade de oferecer um sistema público de saúde universal aos trabalhadores que produzem essa riqueza toda – quase 50 milhões de americanos simplesmente não tem a quem recorrer se ficarem doentes.
A África do Sul, em 2010, deveria ter alardeado sua liderança mundial em estupros – 128 estupros por 100 000 habitantes. (Ah, sim. Na Nigéria, que receberemos esse ano, o estupro marital não é considerado crime. A delegação nigeriana, composta de maridos, deveria entrar no Itaquerão empunhando essa bandeira?)
A Itália e a Espanha, as duas últimas campeãs mundiais, nem deveriam vir à Copa. Na Itália, o desemprego entre os jovens é de 38,5% – no Sul, a região mais pobre do país, a taxa é de 50%. Ano passado, 134 lojas fechavam diariamente na bota – mais de 224 000 pontos já fecharam no varejo italiano desde 2008. Na Espanha, o desemprego está batendo em 30% na população em geral. Entre os jovens, já encostou também nos 50%.
Ou seja, se fossem países sérios, Espanha e Itália não perderiam tempo e recursos participando de um evento da Fifa, essa corja internacional, e se dedicariam com mais a afinco a resolver seu problemas, que são muito graves. Trata-se de países à beira da bancarrota. (Só para comparar, a taxa de desemprego no Brasil, esse fim de mundo em que vivemos, é de 4,9%). Os americanos, se merecessem os hambúrgueres que comem, deveriam usar a visibilidade da Copa, já que nem gostam de futebol mesmo, para chamarem a atenção para a tremenda injustiça e para o absurdo descaso que enfrentam em seu sistema público de saúde. E, se tivessem um pingo de vergonha na cara, espanhois e italianos se recusariam a vir para a Copa, a torcer por suas seleções na Copa, e se postariam de costas para os televisores e sairiam quebrando vitrines (das lojas que ainda lhes restam) a cada gol de Iniesta ou de Balotelli. Mais ou menos como estamos planejando fazer por aqui em represália aos êxitos de Neymar e cia.
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