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Vicente Alencar

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – parte 2 Fortaleza, 22/9/23. Rui Martinho Rodrigues.

 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO – parte 2

O Estado democrático de direito é o produto de transformações históricas do

Estado moderno, originalmente Estado liberal, depois Estado social e por fim Estado

democrático de Direito. Garantias às liberdades negativas, que negavam ao Estado o

direito de impedir a livre circulação de pessoas, a liberdade de expressão com

responsabilidade, liberdade de opinião e de consciência, entre outras. Os governados

emitiam comandos aos governantes com proibições, tais como: não condene sem o

devido processo legal ou não cobre impostos sem lei anterior que o autorize. A isso

Norberto Bobbio (1909 – 2004), na obra A era dos direitos, classificou como segunda

geração de direitos (ou dimensões do Direito), porque ao contrário da primeira geração,

em que o governante proibiam os súditos de condutas como matar, roubar, testemunhar

em falso, os cidadãos estabeleciam limites à conduta dos governantes.

A segunda geração de direitos e a democracia

A segunda geração de direitos estabelecia obrigações de não fazer, típicas

das liberdades negativas. Não ensejam a desculpa de não ter meios para obedecê-las ou

reivindicar poderes excepcionais para cumprir uma obrigação de não fazer. A segunda

geração de direitos é democrática quando se entenda democracia como um conjunto de

garantias destinadas a proteger os cidadãos contra o absolutismo, diversamente do

contratualismo de Thomas Hobbes (1588 – 1679), na obra Leviatã, que legitima o

autoritarismo em nome da segurança. Acrescente-se que a democracia do Estado liberal

pressupõe que os governados ditam normas para os governantes, nos termos da segunda

geração do Direito.


Contrariamente a Antropologia Filosófica que diz ser o homem o lobo do

homem, que inspirou a obra retrocitada, o Estado liberal admite que o homem

circunstancialmente pode ser o lobo do homem ou o seu anjo da guarda, segundo se

infere do pensamento de John Locke (1632 – 1704), nos Dois tratados sobre o governo

civil, que coloca o contrato social limitado pelo Direito Natural. Não se trata de reabrir a

polêmica entre juspositivistas e jusnaturalistas. O juspositivista Norberto Bobbio

reconheceu, na obra Teoria geral do Direito, que a legitimidade jurídica não é autônoma

em relação aos fundamentos políticos do Direito.


A Teoria pura do Direito, de Hans Kelsen (1881 – 1973), culmina com a

norma hipotética fundamental, que pode ser entendida como princípio segundo o qual as


constituições, os precedentes judiciais ou o costume devem ser obedecidos, o que não

fica tão distante do jusnaturalismo. Kelsen, quando assim entendido, reconhece um

princípio anterior ao Direito chancelado pelo Estado (a norma hipotética fundamental)

freio ao absolutismo das constituições, do assembleísmo, dos precedentes jurídicos e do

costume. Teríamos assim a diferença entre a vontade geral e a vontade de todos, não

explicada claramente na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778). Parafraseando a

interpretação conforme, da Nova Hermenêutica constitucional, e recorrendo à

interpretação lógica, a vontade geral pode ser entendida como a norma hipotética

fundamental. A vontade de todos pode ser o costume, as constituições, os precedentes

judiciais ou as assembleias.


O apelo às virtudes cívicas

O Estado liberal é democrático. Governados dirigem comandos aos

governantes e estabelecem proteção contra o absolutismo. A defesa contra o arbítrio das

autoridades fora conquistada e estabelecida a democracia representativa. Agora os

governantes precisavam ser escolhidos pelo povo. Era preciso conquistar votos. Isso

exigia ir além das liberdades negativas, que estabelecem os direitos que J. Guilherme

Merquior (1941 – 1991), na obra O argumento liberal, nomeou como liberdade de agir

e fazer. Ganhou força a tese do Estado provedor. Aristóteles (384 – 328), na obra A

política, descreveu os regimes políticos e o espírito de cada um deles, como as

respectivas formas decadentes. O espírito da democracia é a virtude, mas a sua forma

degenerada é a demagogia.


Virtudes foram invocadas para o aperfeiçoamento do Estado liberal. Nicolau

Maquiavel (1469 – 1527), na obra O príncipe, disse: é mais importante aparentar

virtude do que ser virtuoso. Atender às necessidades dos grupos vulneráveis, ou

aparentar defendê-las, conquista votos, vende livros, semeia admiradores e afaga o ego.

Fazer “justiça” (?) e conquistar o poder une o útil ao agradável. Em 1802 surgiu, na

Inglaterra, a Lei de Saúde Moral dos Aprendizes, que limitou a jornada do trabalho

infantil em doze horas. Protegia pouco, mas era um “avanço” na direção do bem

comum.


O Estado social

Antônio Ferreira Paim (1927 – 2021), brasileiro formado na Universidade

Estatal de Moscou, disse, em seus escritos, que após o fim do voto censitário, que


estabelecia critérios econômicos para a conquista da capacidade eleitoral ativa, os

aspirantes aos cargos eletivos progressivamente se converteram ao distributivismo

fiscal. É sedutora a ideia de distribuir a riqueza dos outros. Não seria preciso a

intervenção do Estado para um cidadão virtuoso distribuir a sua própria riqueza. A ideia

era a proteção dos grupos vulneráveis. Quem pode ser contra? O Estado liberal,

disseram, estava esgotado. A ideia do Estado social cresceu como Estado do bem-estar

Estado provedor. Era preciso superar o abstencionismo estatal, o individualismo e

deslocar a prioridade para o campo dos direitos sociais, tudo isso é relatado por Elías

Diaz, na obra Estado de Direito e sociedade democrática: o que é Estado de Direito.

A dialética, nomeado por Lucio Colletti (1924 – 2001) como senhora de

costumes cognoscitivos fáceis, permitiu que o Materialismo histórico invocasse valores

morais da sociedade burguesa e do cristianismo, como solidariedade, para propor

orientação política, desprezando o materialismo de Friedrich Nietzsche (1844 – 1900),

que peço permissão para qualificar como ontológico. Agrada aos egos defender o

altruísmo cobrando generosidade dos outros, exibir solidariedade terceirizando o ônus

para o Leviatã, que não produz nem tem riqueza e terá de tirá-la de quem tem renda

maior do que o arauto do distributivismo. O cristianismo foi invocado, não para dizer ao

rico: doe ao pobre, como seria próprio dos cristãos, mas para dizer ao pobre que tome

do rico, seja pela expropriação revolucionária ou sob o eufemismo do distributivismo

fiscal, como dizia Roberto de Oliveira Campos (1917 – 2001).


Ganhou força a ideia de alargar a competência jurídica e política do Estado

(social). A legitimidade do Leviatã, diversamente da ideia hobbesiana, não era apenas

promover a segurança e a paz, mas a provisão das necessidades e a justiça social. A

polissemia destes vocábulos não constrange os teóricos do Estado social. A obrigação

de fazer requer meios materiais e poder jurídico-político. Só é possível promover a

reengenharia social, atender às necessidades e fazer justiça com poderes extraordinários.

A individualidade foi confundida com individualismo. Era preciso mitigar a

vagueza do termo “necessidade”. Então surgiu a Teoria das necessidades humanas

básicas, de Abraham H. Maslow (1908 – 1970). O autor achou a legitimação do

argumento das necessidades e adjetivou-as com humanas e como básicas. Deixou de

lado as subjetividades e as aspirações individuais. Fixou-se na objetividade imposta por

uma suposta condição humana, adotou uma lista fechada das necessidades e estabeleceu

uma hierarquia entre elas.


Os que recusam a ideia da existência de uma natureza humana e enveredam

pelo reducionismo historicista ou culturalista, aderiram com sofreguidão ao objetivismo

universalista de Maslow, que reforçava a ideia de reengenharia social dos herdeiros dos

reis filósofos de Platão (428/427 – 348/347 a.C.), na obra A República, ou pretensos

demiurgos que pretendem nos conduzir à terra prometida e nela criar um novo homem.

As necessidades não são tão objetivas. As aspirações humanas não cabem

numa lista fechada e hierarquizada, salvo se a liberdade de agir e fazer for abandonada e

a individualidade demonizada como individualismo. Então as liberdades negativas

deixam de existir e a democracia será o absolutismo dos “esclarecidos”. Nem a reserva

do possível constrange os demiurgos. Eles não falam em produtividade. Basta defender

o bem. Ou aparentar virtude?


Isso tudo ainda seria pouco. O Estado social seria entendido como expressão

dos direitos sociais clássicos, dirigido aos necessitados segundo a lista posteriormente

feita por Maslow. Era preciso fazer mais: defender direitos universais, sem distinção de

pobres ou ricos. “Minorias”, ressignificadas para incluir grandes grupos, deveriam ser

protegidas pelo Leviatã revisto e ampliado. Era preciso defender a dignidade da pessoa

humana, embora este fosse um conceito caracterizado por uma grande polissemia.

Conceitos obscuros, indeterminados ou vagos são os preferidos pelos que buscam

agradar a todos para angariar votos, vender livros ou ser admirados, porque o povo não

percebe que os significados obscuros destroem a segurança jurídica.


J. M. Machado de Assis (1839 – 1908), no conto Teoria do medalhão, narra

a orientação que um pai dá a um filho, para que faça uma carreira exitosa,

recomendando que use conceitos abertos ao gosto dos ouvintes e fale apenas

genericamente. Ganha força a ideia do Estado democrático de direito, que até entre os

intelectuais poucos sabem o que não é a democracia das liberdades negativas nem o

Direito do jusnaturalismo nem do juspositivismo. Talvez muitos dos constituintes de

1988 não soubessem o que era isso, quando definiram o Estado brasileiro como

pertencente a esta categoria. Mas isso merece outra reflexão.


Fortaleza, 22/9/23.

Rui Martinho Rodrigues.

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