O INCÊNDIO DO REICHSTAG
Historiadores divergem sobre a História
ser considerada mestra. Epidemiologistas, urbanistas, economistas e militares
valorizam o que chamam “lições da História”. Dizem que as epidemias passadas, o
desenvolvimento das cidades, as crises econômicas e os sucessos no campo bélico
encerram lições preciosas. Historiadores, porém, não formam consenso sobre
isso. Os que retiram lições do passado consideram aspectos específicos da
experiência humana. Os que negam à História o papel de professora se opõem ao
tradicionalismo que pode vir junto com a ideia de História orientadora. Também
por entender que historiadores interpretam fatos e atos cujo significado e
alcance não pode ser considerado indubitável. Finalmente porque a visão do
historiador tende a ter uma abrangência mais ampla do que os estudos
específicos de epidemiologistas, urbanistas, economistas, estrategistas e
outros estudiosos de áreas específicas.
Olhando para o conjunto da experiência
humana é possível vislumbrar altos e baixos, idas e vindas que descaracterizam
uma marcha evolutiva no sentido de mudanças com o significado de
aperfeiçoamento. Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra “História e memória”,
ressalta a diferença entre a marcha dos acontecimentos no âmbito científico,
tecnológico, da organização política e jurídica, de um lado; diversamente das
transformações da condição humana. A técnica e a tecnologia de fato avançam e o
fazem rapidamente, alcançando notáveis aperfeiçoamentos. A ciência também
avança no mesmo sentido, porém o faz mais lentamente, considerando-se o largo
tempo decorrido entre as poucas revoluções científicas. Os “avanços” dentro de
um mesmo paradigma de ciência não seriam propriamente evolução, mas meros
complementos do conjunto de referências cognitivas estabelecidas, na visão da
escola do racionalismo pós-crítico (Thomas S. Kuhn, na obra “A estrutura das
revoluções científicas”).
A organização jurídica e política, por
sua vez, não segue uma direção contínua, mas uma linha sinuosa com alternância
da direção seguida. Registre-se, ainda, a natureza polêmica do que seria
aperfeiçoamento evolutivo no campo jurídico e político, é um juízo permeado por
concepções ideológicas e marcado pela divergência do que seja progresso nas
relações sociais, embora haja um núcleo consensual concernente a alguns
valores. Não existe, todavia, um entendimento pacífico quanto ao modo como
defende-los ou protege-los. A ideia de progresso ou avanço, quando se tem uma
definição minimamente consensual sobre o que seja tal coisa afasta a ideia de
evolução histórica, no sentido de aperfeiçoamento, problematizando o
reconhecimento de lição concernente ao que não se define aperfeiçoamento.
A evolução, no sentido de
aperfeiçoamento, deveria, no entendimento de alguns, atender a três requisitos:
(i) alcançar uma melhor convivência
do indivíduo consigo mesmo, devendo ter menos conflitos íntimos, dependendo
menos de ansiolíticos e soníferos, apresentando menores índices de suicídio; (ii) coexistência mais pacífica e mais
cooperativa com o outro, conflitando menos, tendo menores índices de
criminalidade e de ações judiciais, tanto penais como civis; e (iii) melhor convivência com a natureza,
preservando espécies, biomas, qualidade do ar etc. Tal conjunto não existe. Os
gregos falavam em eterno retorno. A Antiguidade clássica não reconhecia
progresso, mas aceitando a recorrência dos acontecimentos, aceitava a ideia de
lições da História. A visão bíblica, segundo a qual a experiência humana
levaria ao que se pode considerar como decadência, antevendo o crescimento da
iniquidade, pode até ser vista como lição, por mostrar exemplos do que não deve
ser feito, entremeado com uns poucos atos virtuosos de agentes da história igualmente
escassos.
Acontecimentos históricos podem oferecer
lições em campos específicos. O incêndio criminoso do Reichstag (prédio do
parlamento alemão), em fevereiro de 1933, apenas quatro semanas após a posse de
Adolf Hitler no governo, é um caso exemplar de aprendizado em matéria
específica. O jovem imigrante holandês Marinus van der Lubbe (1909 – 1934),
militante comunista, foi responsabilizado. Não se discute muito a condição de
autor do crime, a ele atribuída no inquérito que apurou o fato. Mas há quem
fale em “operação de bandeira falsa” (feita por uma parte em um conflito,
aparecendo como se a outra parte fosse). Discute-se a corresponsabilidade do
Partido Comunista Alemão ou do Movimento Comunista internacional (MCI),
dirigido, na época, desde Moscou. Também há quem avente a hipótese de que o
jovem comunista holandês tenha sido inadvertidamente usado pelos nazistas, que
depois se aproveitaram do fato. Não se pode afirmar que o Partido Nacional
Socialista dos Trabalhadores Alemães (partido nazista) tenha induzido o jovem
Lubbe a praticar o crime, mas inquestionavelmente tirou proveito a insensatez
do rapaz, tendo implantado a ditadura nazista mais facilmente.
A onda de choque provocada pelo incêndio
criminoso ensejou a decretação do que muitos descrevem como um estado de
emergência, da iniciativa de Hitler, com o apoio de democratas indignados com o
crime. Começaram (i) as prisões.
Primeiro às dezenas, depois às centenas e não demorou para atingirem os
milhares. (ii) Advogados deixaram de
ter acesso aos autos dos processos; (iii)
“flagrantes” foram feitos, não no momento da prática delituosa (flagrante
real), sem que fossem encontrados vestígios materiais da prática do crime (flagrante
presumido); sem que tenha havido perseguição continuada (flagrante impróprio),
conforme Ivan Horcaio (autor contemporâneo), na obra “Dicionário jurídico”.
Pior: houve flagrante decretado, embora por definição esta espécie de prisão
não se faça mediante decreto, por ser feita quando o ato criminoso é
surpreendido no momento em que é praticado ou logo após havendo vestígios do
delito ou havendo perseguição continuada, como dito. (iv) Condutas não tipificadas como crime passaram a ser tratadas
como delitos. (v) Penas sem prévia
cominação legal passaram a ser aplicadas. (vi)
Surgiram delitos de opinião. (vii)
No iter criminis atos preparatórios passaram a ser apenados.
Tudo era legitimado, se fosse praticado
pelos nazistas. Tudo era crime se praticado por integrantes da oposição. O
judiciário se tornou partidariamente seletivo. As garantias do devido processo
legal foram afastadas. Não voltaram a ser observadas. A situação só piorou, até
as forças aliadas derrotaram o III Reich.
Talvez a História
auxilie a compreensão da realidade, feitas as ponderações pertinentes impostas
pelas peculiaridades de cada situação histórica. O efeito bumerangue de certos
atos pode ser claramente observada na História. Não é toda semelhança que pode
levar aos mesmos resultados ou produzir efeitos análogos. Mas a contribuição da
História não deve ser desprezada, como ressalta Marc Bloch, na obra “Apologia
da História ou o ofício do historiador”.
Fortaleza, 9/1/23.
Rui Martinho Rodrigues.
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