Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

A (DES)ORIENTAÇÃO COGNITIVA

 A (DES)ORIENTAÇÃO COGNITIVA


Um certo tipo de análise da linguagem se opõe a formulação conceitual como elaboração da consciência. Afirma que não há meio de derivar articulações entre os fatos. Desclassifica a elaboração de conceitos conforme Ayn Rand (1905 – 1982), na obra Objetivismo. Nega a verdade, o que indiferencia o certo do erro e da mentira. É erro ou sofisma. Quem diz que a tinta de uma caneta é azul ou declara esse tipo de verdade (objetiva) que é correspondência entre o que é declarado e um fato verificável

de algum modo, acerta ou erra. O racionalismo crítico, com destaque para Karl R.

Popper (1902 – 1994), não repudiou verdade objetiva, pelo contrário, exigiu a validação

do discurso pela crítica, diversamente do relativismo laxista.


Verdade moral não é impossível. É a coincidência entre o dito e o que o


declarante sabe, pensa ou sente.


Verdade lógica também é possível. Não trata da materialidade do objeto,

mas da harmonia entre as partes do discurso: se “A” é maior do que “B” e “B” é maior

do que “C”, então “A” é maior do que “C”. Verdades lógicas são abstrações. Não se

condicionam as circunstâncias, como as “condições normais de temperatura e pressão”.

Não trata de objetos materiais.


Verdades ontológicas não são verificáveis. Não são próprias da ciência.

Integram a Filosofia no campo da metafísica. Ciência não trata da ontologia do ser

(essência), abstraindo particularidades, buscando a abrangência capaz de alcançar a

pluralidade do ser de modo pleno e integral, na visão de Aristóteles (384 a. C.– 322 a.

C.). Ciência não diz o que é a gravidade, apenas descreve o seu comportamento como

sendo diretamente proporcional a quantidade de massa dos objetos e inversamente

proporcional ao quadrado da distância entre eles (Isaac Newton, 1643 – 1727). Pode se

expressar como lei em sentido científico, um conjunto de fatores que em condições

dadas produz um resultado previsto.


A harmonia entre as partes do discurso, objeto da lógica, não sofre os efeitos

da materialidade do objeto. Afirmar: que todos os elefantes voam; que Dumbo é

elefante; logo Dumbo voa é um discurso cujas partes se harmonizam. É lógico, embora

o aspecto material o desclassifique como falso. É necessário um complemento material

verificável. Mas não é possível defender o relativismo laxista com base nas limitações


da lógica aristotélica. As limitações do discurso metafísico não servem de arrimo ao

negativismo cognitivo.


A desorientação do mundo, causada pelos (de)formadores de opinião, de

que fala Theodore Dalrymple (Anthony Daniels, 1949 – vivo), acrescente-se que a

grande imprensa nos alimenta com ficção, quem quiser conhecer a realidade deve ler

ficção. Albert Camus (1913 – 1960) teria dito que a ficção é a mentira que nos conta a

verdades. O filósofo francês usou linguagem figurada. Mentiras têm o significado de

negação consciente dos fatos, contrariando a verdade moral, diversamente do erro, que

se opõe as verdades objetiva e lógica. A ficção não se apresenta falsamente como

verdade. Conta parábolas, alegorias ou alguma forma de representação propondo

verdades lógicas.


Dizer que uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade, frase atribuída a

Joseph Goebbels (1897 – 1945) e a outros autores, confunde a credibilidade de uma

mentira com verdade. A mentira repetida não se torna verdade objetiva, nem verdade

moral, nem verdade lógica ou ontológica. A falta de contestação confere aparência de

verdade ao erro e a desonestidade. A imprecisão conceitual gera confusão. A

consciência, em seu nível mais elementar, é um processo neurológico, simples

percepção, fenômeno sensorial, automático, não volitivo, sem compreensão do processo

cognitivo. No exame dos conceitos o processo cognitivo é psicológico, consciente e

volitivo. A repetição sem contestação convence quem não vai além da percepção

sensorial, sem a ação voluntária da vigilância epistemológica.


O conhecimento é uma alvenaria cujos tijolos são conceitos. Negar a

validade destas unidades, substituindo-as por categorias teóricas sem limites definidos,

a pretexto de alcançar a diversidade do mundo real é falácia ou sofisma. Conceitos são

elaborados por meio de abstrações. Alcançam certa diversidade. Mesa é um conceito

formado com uma superfície plana sobre a qual é possível colocar coisas, situada acima

do chão, apoiado em alguma coisa. Pode ter diferentes números de pernas. Pode ser

feita dos mais diversos materiais, para múltiplas finalidades. Alargar a pluralidade dos

conceitos é o caminho da indeterminação semântica do discurso. Encobre o raciocínio

com uma nuvem de indeterminações. Protege o engodo contra a crítica. Mesa não deve

se indiferenciar de cama, fogão ou avião. Sofismas se beneficiam da indeterminação

semântica.


Invocar a ciência para legitimar um paradigma que já não resiste ao esforço

de falseamento proposto por Popper é erro comum. A Teoria microbiana de Louis

Pasteur (1822 – 1895), relacionando micróbios com doenças, contrariou a concepção

segundo a qual o ar, a água e coisas insalubres transmitiam doenças (Teoria dos

miasmas). Aterrar pântanos afastava mosquitos transmissores de doenças e isso

aparentemente ratificava a Teoria miasmática. A comunidade científica não

compreendeu Pasteur. Alegou a autoridade de autores renomados e da tradição.

Micróbios invisíveis, presentes em toda parte, que entravam nas pessoas e poderiam

matá-las era coisa de paranoico.


Segundo Max K. E. L Planck a Física só cresce quando morre uma geração

de físicos. Seguidores de um paradigma se tornam impermeáveis a um conhecimento

diferente, como demonstrado por Thomas S. Kuhn (1922 – 1996), na obra “A estrutura

das revoluções científicas”. Gaston Bachelard (1864 – 1962) falou em obstáculos

epistemológicos ao crescimento do conhecimento, na obra “O novo espírito científico”.

Muitos invocam em vão o “santo nome” da ciência em razão da cegueira dos

paradigmas (Thomas Kuhn), de interesse argentário ou como tática de conquista do

poder. Excluir da cientificidade desqualifica pessoas, destrói ou constrói reputações,

contrariando o pluralismo da comunidade científica.


Confundir conceitos, sem distinguir terrorismo e vandalismo; crítica à

autoridade e ataque às instituições; indignação cívica e discurso de ódio é elasticidade

semântica que permite confundir defesa da democracia com censura prévia; com

supressão das prerrogativas da advocacia e das garantias do devido processo legal, entre

as quais a supressão de instâncias (violando o princípio do juiz natural); permite

criminalizar condutas não tipificadas; e permite manter em segredo procedimentos que

devem ser públicos.


Filosofia é esforço de superação da doxa, palavra grega para crença ingênua.

Exige vigilância epistemológica, sem a licenciosidade da senhora de costumes

cognoscitivos fáceis, como Lucio Colletti (1924 – 2001) nomeava a dialética de G. W.

Friedrich Hegel (1770 – 1831). Defender a quadratura do círculo em nome da síntese

dos contrários é licenciosidade epistemológica. Democracia é conceito complexo,

elaborado com um conjunto de noções. Envolve consentimento dos cidadãos, liberdade

de crítica, proteção de um ordenamento jurídico que limite o arbítrio de autoridades e


uma educação que submeta teorias ao confronto com as objeções, diversamente de

catequese ideológica.

Fortaleza, 27/1/23.

Rui Martinho Rodrigues.

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