CIDADANIA HOJE
Os gregos substituíram a força pela
argumentação na ágora, iniciando o processo democrático (Olivier Nay, 1968 –
viva, História das ideias políticas). Procedimento que exige compreensão do
objeto discutido e disposição para submeter paixões e interesses à razão. A
política, porém, tende a apaixonar. Torna as mentes impermeáveis à razão. Interesses
não cedem facilmente diante de arrazoados, ainda que bem fundamentados.
O Estado contemporâneo trata de temas complexos
como matriz energética, inflação, câmbio, segurança pública, política sanitária
e reforma tributária. Tais assuntos são indigestos para o homem comum, para
eruditos não especializados e até para especialistas. Políticos, ao pedir o
voto dos cidadãos, tendem a apresentar soluções simples para os problemas
complexos. O eleitor não entenderia explicações profundas. Aspirantes aos
cargos eletivos também nem sempre sabem o que dizem.
Mas nem tudo está fora do alcance do
eleitor. A integridade pessoal dos candidatos e o debate sobre costumes são
aspectos que homem médio, figura lembrada em manuais de Direito, pode entender.
Vozes qualificadas, porém, desqualificam o debate sobre a moralidade do agente
público como ingenuidade, má fé ou atitude relacionada a um viés perigoso. Costumes
estão sendo tratados como matéria a ser definidas por intelectuais. A moral
tradicional é rotulada como preconceito, obscurantismo ou ódio.
A má política foi primeiro a arte de
impedir as pessoas de se intrometerem naquilo que lhes concerne. Em época
posterior, acrescentaram-lhe a arte de forçar as pessoas a decidir sobre o que
não entendem (Paul Valéry (1871 – 1945). O homem médio é capaz de ajuizar sobre
os costumes, sobre o comportamento social, matéria a ele concernente. Sábios reis
filósofos, novos gestores da moral, querem impor uma ortodoxia dos costumes. Divergência
agora é heresia. Merece fogueira. Crítica agora é ataque ou crime de ódio. Não
existe tal tipo penal, nem sequer qualificadora, agravante ou majorante. Mas juristas
falam em tipos inexistentes, como fake news.
Crítica e ataque pessoal a autoridades
são confundidos com ataques às instituições. Dirigida a um piloto a crítica não
visa a empresa de aviação ou o fabricante. Democracia é, entre outras coisas,
liberdade de expressão. Censura prévia é incompatível com a ágora. Autoridades
não são imunes à crítica. Democracia é o regime da desconfiança. Por
desconfiança instituímos mandatos por tempo determinado, proibimos nomeação de
parentes em cargos de livre nomeação e exigimos que atos administrativos se
submetam ao princípio da publicidade. Tais exigências não são ataques às
instituições, antes existem para resguarda-las.
A imparcialidade do pesquisador exige,
para Leopold von Ranke (1795 – 1886) distanciamento, nos termos da História
metódica ou “científica”. Sem o rigor rankeano, Max Weber (1864 – 1920) defende
a neutralidade axiológica nos juízos de fato, mas enfatiza a ação finalista do
sujeito da história como o cerne da interpretação dos fatos, com metodologia
compreensiva, salva a subjetividade.
Historiadores,
contrariamente a Ranke, não são juízes, mas nem sempre podem se furtar a julgar.
Barbara Tuchman (1912 – 1989), adepta da história narrativa, escreveu “A marcha
da insensatez”, que já no título emite um juízo de valor. O distanciamento,
tanto na visão rankeana como na weberiana, é necessário para que os erros sejam
limitados. A pesquisa, para Ranke, deveria focar em acontecimentos afastados
por Cronos. No futuro, quando personagens polêmicos de hoje tenham passado, não
será difícil perceber que crítica não é ataque; autoridades não se confundem
com as instituições. A liberdade de expressão não deve ser tolhida por suspeitarmos
do agente político, embora com arrimo em fundadas razões.
Aberta a caixa de
Pandora, as virtudes fugiram. Mas ficou a esperança.
Fortaleza, 29/7/22.
Rui Martinho Rodrigues
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