PARTE
I DE NOVA SÉRIE
CONHECIMENTO, PAIXÃO E POLARIZAÇÃO I
O mundo está polarizado, encolerizado. A
intolerância encontra arrimo na denúncia da intolerância do outro. As redes
sociais são apontadas como a grande culpada pela conflagração das sociedades
pelo mundo afora, apresentando-se de modo desigual entre diferentes países. Não
se trata, todavia, de fenômeno tão novo quanto as tecnologias digitais, embora
a difusão massiva e instantânea de (des)informação e de opiniões exerça
influência muito relevante. As crises que se seguiram a Primeira Guerra Mundial
polarizaram a Europa. Os anos trinta foram marcados por radicalização e
polarização da sociedade brasileira. Os ânimos se exaltam mais facilmente em
tempo de crises.
A conflagração das sociedades resulta da
confluência das crises de (i) referências valorativas, (ii) do descrédito dos
tradicionais formadores de opinião, (iii) do desgaste dos modelos de
organização política, (iv) da súbita e ampla transformação cultural e de
inumeráveis fatores. Abaladas estas referências a comunicação é prejudicada
pela diversidade que os significantes adquirem em razão da multiplicidade de
significados, prejudicando o fenômeno social básico que é a comunicação. Não há
sociedade sem comunicação entre os seus possíveis integrantes. Signos
linguísticos formam os sistemas em que cada um deles é o que o outro não é,
conforme Ferdinand de Saussure (1857 – 1913). A inobservância da demarcação dos
significados dos signos gera uma verdadeira babel e convida ao conflito.
Os gregos decidiam, na ágora, sobre
problemas como fazer a guerra ou a paz, além de sacrifícios aos deuses por
ocasião de epidemias. A complexidade da sociedade contemporânea nos coloca
diante de problemas que desafiam a compreensão até dos eruditos e
especialistas. Os candidatos a herdeiros dos reis filósofos de Platão (428/427
a.C. – 348/347 a.C.) propõem uma reengenharia social. O fracasso do filósofo
citado, quando tentou aplicar em Siracusa os princípios de sua famosa obra “A
República” não desanimou seus prosélitos que insistem no empreendimento
demiúrgico, apesar da revisão do pensamento do autor citado em obra posterior
“As leis”. O fracasso de todas as tentativas posteriores não abala os pretensos
criadores de uma nova sociedade e por meio dela um novo homem.
Parece haver o que Thomas Samuel Kuhn
(1922 – 1996), na obra “A estrutura das revoluções científicas” descreve como o
fenômeno da incomunicabilidade dos paradigmas, também conhecido como cegueira
dos paradigmas. Gaston Bachelard (1884 – 1962), na obra “O novo espírito
científico”, mencionou obstáculos epistemológicos aos novos conhecimentos.
Thomas Kuhn usou, ainda, a expressão “vacina contra a realidade”, que tem sido
divulgada como imunização cognitiva. Tudo isso se restringe aos aspectos
epistemológicos como entrave à percepção e ao entendimento da realidade. Outros
fatores relevantes são: (i) paixões e (ii) interesse, fenômenos ligados às (iii)
transformações das línguas vivas, (iv) cosmopolitismo, (v) mobilidade social e
geográfica e (vi) manipulação por parte de comunicadores, (vii) de intelectuais
e (viii) de líderes políticos.
A incomunicabilidade dos paradigmas gera
o diálogo de surdos, exaspera e estimula conflitos. O exame de cada um dos
aspectos aludidos exige um esforço de síntese. Aqui apenas formulamos um esboço
de alguns aspectos relevantes como indicação para futuros estudos, procurando
perspectivas não muito lembradas. Os obstáculos epistemológicos da Bachelard e
a imunização cognitiva de Kuhn resultam de convicções e de instrumentos
teóricos de apreensão da realidade. Rubem Alves (1933 – 2014), em um de seus
escritos, disse com propriedade que quem usa anzol grande só pesca peixes
grandes e pensa que isso confirma a hipótese de que naquele lago só existem
peixes grandes. Conscientemente ou não ele explicou didaticamente a cegueira
dos paradigmas e o obstáculo epistemológico. A hegemonia de um paradigma impõe
o uso de categorias de análise e métodos, a exemplo do anzol grande que só pega
peixe grande alimenta os pressupostos da tradição teórica, metodológica e
política com um forte viés de confirmação.
A confusão entre (i) o
positivismo de Auguste Comte (1798 – 1857) e positividade; (ii) a Teoria da
Relatividade e o relativismo cognitivo e axiológico; (iii) liberdade de agir e
de fazer (negativas) e liberdade de ser (positivas); (iv) desejos e direitos;
direitos potestativos e direitos dotados de exigibilidade contra terceiros;
desigualdade e diferença são considerações que serão abordadas oportunamente em
sequência.
Fortaleza, 11/8/22.
Rui Martinho Rodrigues.
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