Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

terça-feira, 12 de julho de 2022

TRISTE SÉCULO 21

 TRISTE SÉCULO 21

César Barreto

(Professor, Compositor, Poeta, Cronista e Cantor)


Ontem à noite, aqui mesmo no FB, vi/ouvi algumas cenas metamusicais que me deixaram

meio PDV (1). O meu sentimento me diz que definitivamente houve na arte musical

nordestina (2) uma ruptura terrível nos padrões da relação absoluta passado-presente-

futuro: na virada para o século 21 perdemos o chão dos nossos pés e o céu das nossas

cabeças, algo assim como o que p(r)o(f)etiza Affonso Romano de Sant’Anna no curioso (e

furioso) livro A GRANDE FALA DO INDIO GUARANI PERDIDO NA HISTÓRIA E OUTRAS

DERROTAS.

Dei-me conta, assustado (como não vi isso antes?), de que nestes primeiros 21 anos e

meio do século (não das luzes mas das cruzes), o que mais se viu na cena musical

nordestina foi uma profusão atônita e anacrônica de neo-cangaceiros estrelados e

brilhantes, súditos do “reino do jeans” – antíteses do “reino de sola” (3) –, pois

desencourados e de falamansa, que fogem dos gritos longos dos aboios como o Cão foge

da cruz.

E, pior, a música que estão produzindo espelha essa mesma destemperança, renegando

os ecos do passado e forjando para o futuro, apressadamente, antes que o arroz seque,

um cancioneiro fluido, quase sem raiz (tipo bananeira), pasteurizado (4), incapaz de

sobreviver por mais de 70 anos como ocorreu com a lavra fecunda semeada por Xerém,

Manézinho Araújo, os Gonzaga luiz-zé-severino, os Zé dantas-marcolino-clementino-

calixto-milton, os João silva-e-do vale, Jackson do Pandeiro, Jacinto Silva, Abdias, Pedro

Sertanejo, Marinês, Noca do Acordeon, Antônio Barros e Cecéu, Gordurinha, Ary Lobo,

Clemilda, Anastácia, os trios Nordestino-3 do Nordeste-Mossoró (5), que tanto lutaram

por uma cultura sólida e duradoura que se renovasse mesmo com escassez de maiores

talentos.

Pois bem, essa rica cultura musical foi por água abaixo nessa chuva ácida de músicas e

músicos equivocados que, em grande maioria, já nem sabem que ela existiu ou, pior

ainda, fazem questão de esquecê-la. A música que realmente criou identidade para o

povo nordestino (antes chamado genericamente de nortista) foi confinada abruptamente

no museu das coisas menores, até esquisitas, e ergueram-se ao redor os muros altos do

silêncio sepulcral, enquanto os gigantescos paredões de caixas-de-som (físicas e virtuais)

abrem as suas comportas-alto-falantes muito bem controladas, não se sabe por quem,

produzindo enxurradas de coisas gravadas “nas nuvens” (sempre passageiras, como diz a

canção do Hermes Aquino) em estilos efusivamente aplaudidos que classifico assim:

▪ Canção-narrativa armorial;

▪ Toada bossa-nova;

▪ Xote-cult urbanóide;

▪ Baião metralhado de-uma-nota-só (tátátátátátátá...);

▪ ‘Rastarregue baiano pula-pula-pipoquinha;

▪ Coco-fanque.

Vejo também que os nossos jovens sanfoneiros, em busca do reconhecimento do seu

valor, têm preferido aprender o repertório do virtuoso francês Richá Galeanô,

esquecendo de trilhar os caminhos já abertos e bem pavimentados por Julinho, Sivuca,

Noca, Dominguinhos, os Calixto Zé-Luizinho-Bastinho, Chico Justino, Clementino Moura

e outros mais. Tocar XAXADINDO DAS ALAGOAS nem pensar! Talvez se o Galeanô gravar

com o título XAXADINHÔ DES ALAGOÁS.

E se olharmos direitinho as nossas quadrilhas juninas o que ouviremos e veremos na

verdade é uma trilha sonora alterada de 33 para 78rpm (6) e no visual um retumbante


figurino à moda escolas-de-samba-cariocas-pra-gringo-ver, combinado com coreografias

avexadas espelhadas nos balés da rede Globo.

No cenário cearense, o que os intérpretes compositores, músicos e grupos musicais

fizeram, em cerca de 30 anos de boa produção (até o final dos anos 90) parece que virou

mesmo foi poeira, se tivesse virado suco (como no filme) seria menos mal pois alguém

beberia.

Olhando para baixo, para cima e para os lados vejo que, musical e culturalmente, estamos

num mato sem cachorro, sem choro nem vela, sem chão e sem céu neste triste século 21.

O baiano TOM ZÉ, em seu álbum JOGOS DE ARMAR, traz uma faixa intitulada A CHEGADA

DE RAUL SEIXAS E LAMPIÃO NO FMI, onde ele faz a seguinte afirmação;

“TIRARAM OS COLHÕES DO ROCK

E ENRABARAM O IÊ-IÊ-IÊ”.

Está dolorosamente certo e o mesmo ouso dizer, parafraseando TOM ZÉ:

TIRARAM OS COLHÕES DO XOTE

E ENRABARAM O BAIÃO.

Falando por mim, e só por mim (mas como dizia o egocêntrico Chaves, “sigam-me os bons”), ainda prefiro agir (e re-agir) seguindo os versos do poeta Affonso Romano (7), ao final do livro citado: 

“Índio, eu olho o brilho das espadas e estandartes o tropel empoeirado e colorido da morte

− cada vez mais perto

e aguardo o inimigo com uma canção nos lábios

− e meu peito aberto”.

Digo, não sem lamentar, mas sem medo de assinar embaixo.

Cesar Barreto, em Fortaleza, 9/7/22.

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NOTAS:

(1) minha sigla para Puto da Vida;

(2) certamente para a música em geral mas prefiro falar aqui só da nossa;

(3) expressão tomada de empréstimo de um baião gravado pelo ótimo grupo

pernambucano Som da Terra: “meu chapéu de couro/meu reino de sola”;

(4) expressão bem cunhada pelo pesquisador Christiano Câmara para definir a música

brasileira, isso já na década de 80;

(5) para citar apenas alguns dos nossos grandes intérpretes/compositores;

(6) com rotação alterada nas radiolas antigas o disco girava mais rápido e a música

tocava mais rápida também, tipo o que estão fazendo hoje as bandas de forró;

(7) de quem me fiz parceiro musicando partes do poema A MORTE DA BALEIA.

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