TRISTE SÉCULO 21
César Barreto
(Professor, Compositor, Poeta, Cronista e Cantor)
Ontem à noite, aqui mesmo no FB, vi/ouvi algumas cenas metamusicais que me deixaram
meio PDV (1). O meu sentimento me diz que definitivamente houve na arte musical
nordestina (2) uma ruptura terrível nos padrões da relação absoluta passado-presente-
futuro: na virada para o século 21 perdemos o chão dos nossos pés e o céu das nossas
cabeças, algo assim como o que p(r)o(f)etiza Affonso Romano de Sant’Anna no curioso (e
furioso) livro A GRANDE FALA DO INDIO GUARANI PERDIDO NA HISTÓRIA E OUTRAS
DERROTAS.
Dei-me conta, assustado (como não vi isso antes?), de que nestes primeiros 21 anos e
meio do século (não das luzes mas das cruzes), o que mais se viu na cena musical
nordestina foi uma profusão atônita e anacrônica de neo-cangaceiros estrelados e
brilhantes, súditos do “reino do jeans” – antíteses do “reino de sola” (3) –, pois
desencourados e de falamansa, que fogem dos gritos longos dos aboios como o Cão foge
da cruz.
E, pior, a música que estão produzindo espelha essa mesma destemperança, renegando
os ecos do passado e forjando para o futuro, apressadamente, antes que o arroz seque,
um cancioneiro fluido, quase sem raiz (tipo bananeira), pasteurizado (4), incapaz de
sobreviver por mais de 70 anos como ocorreu com a lavra fecunda semeada por Xerém,
Manézinho Araújo, os Gonzaga luiz-zé-severino, os Zé dantas-marcolino-clementino-
calixto-milton, os João silva-e-do vale, Jackson do Pandeiro, Jacinto Silva, Abdias, Pedro
Sertanejo, Marinês, Noca do Acordeon, Antônio Barros e Cecéu, Gordurinha, Ary Lobo,
Clemilda, Anastácia, os trios Nordestino-3 do Nordeste-Mossoró (5), que tanto lutaram
por uma cultura sólida e duradoura que se renovasse mesmo com escassez de maiores
talentos.
Pois bem, essa rica cultura musical foi por água abaixo nessa chuva ácida de músicas e
músicos equivocados que, em grande maioria, já nem sabem que ela existiu ou, pior
ainda, fazem questão de esquecê-la. A música que realmente criou identidade para o
povo nordestino (antes chamado genericamente de nortista) foi confinada abruptamente
no museu das coisas menores, até esquisitas, e ergueram-se ao redor os muros altos do
silêncio sepulcral, enquanto os gigantescos paredões de caixas-de-som (físicas e virtuais)
abrem as suas comportas-alto-falantes muito bem controladas, não se sabe por quem,
produzindo enxurradas de coisas gravadas “nas nuvens” (sempre passageiras, como diz a
canção do Hermes Aquino) em estilos efusivamente aplaudidos que classifico assim:
▪ Canção-narrativa armorial;
▪ Toada bossa-nova;
▪ Xote-cult urbanóide;
▪ Baião metralhado de-uma-nota-só (tátátátátátátá...);
▪ ‘Rastarregue baiano pula-pula-pipoquinha;
▪ Coco-fanque.
Vejo também que os nossos jovens sanfoneiros, em busca do reconhecimento do seu
valor, têm preferido aprender o repertório do virtuoso francês Richá Galeanô,
esquecendo de trilhar os caminhos já abertos e bem pavimentados por Julinho, Sivuca,
Noca, Dominguinhos, os Calixto Zé-Luizinho-Bastinho, Chico Justino, Clementino Moura
e outros mais. Tocar XAXADINDO DAS ALAGOAS nem pensar! Talvez se o Galeanô gravar
com o título XAXADINHÔ DES ALAGOÁS.
E se olharmos direitinho as nossas quadrilhas juninas o que ouviremos e veremos na
verdade é uma trilha sonora alterada de 33 para 78rpm (6) e no visual um retumbante
figurino à moda escolas-de-samba-cariocas-pra-gringo-ver, combinado com coreografias
avexadas espelhadas nos balés da rede Globo.
No cenário cearense, o que os intérpretes compositores, músicos e grupos musicais
fizeram, em cerca de 30 anos de boa produção (até o final dos anos 90) parece que virou
mesmo foi poeira, se tivesse virado suco (como no filme) seria menos mal pois alguém
beberia.
Olhando para baixo, para cima e para os lados vejo que, musical e culturalmente, estamos
num mato sem cachorro, sem choro nem vela, sem chão e sem céu neste triste século 21.
O baiano TOM ZÉ, em seu álbum JOGOS DE ARMAR, traz uma faixa intitulada A CHEGADA
DE RAUL SEIXAS E LAMPIÃO NO FMI, onde ele faz a seguinte afirmação;
“TIRARAM OS COLHÕES DO ROCK
E ENRABARAM O IÊ-IÊ-IÊ”.
Está dolorosamente certo e o mesmo ouso dizer, parafraseando TOM ZÉ:
TIRARAM OS COLHÕES DO XOTE
E ENRABARAM O BAIÃO.
Falando por mim, e só por mim (mas como dizia o egocêntrico Chaves, “sigam-me os bons”), ainda prefiro agir (e re-agir) seguindo os versos do poeta Affonso Romano (7), ao final do livro citado:
“Índio, eu olho o brilho das espadas e estandartes o tropel empoeirado e colorido da morte
− cada vez mais perto
e aguardo o inimigo com uma canção nos lábios
− e meu peito aberto”.
Digo, não sem lamentar, mas sem medo de assinar embaixo.
Cesar Barreto, em Fortaleza, 9/7/22.
_________________________________________________
NOTAS:
(1) minha sigla para Puto da Vida;
(2) certamente para a música em geral mas prefiro falar aqui só da nossa;
(3) expressão tomada de empréstimo de um baião gravado pelo ótimo grupo
pernambucano Som da Terra: “meu chapéu de couro/meu reino de sola”;
(4) expressão bem cunhada pelo pesquisador Christiano Câmara para definir a música
brasileira, isso já na década de 80;
(5) para citar apenas alguns dos nossos grandes intérpretes/compositores;
(6) com rotação alterada nas radiolas antigas o disco girava mais rápido e a música
tocava mais rápida também, tipo o que estão fazendo hoje as bandas de forró;
(7) de quem me fiz parceiro musicando partes do poema A MORTE DA BALEIA.
Nenhum comentário:
Postar um comentário