FUNDAMENTOS POLÍTICOS
Categorias teóricas podem direcionar o
conhecimento. Clãs, tribos, reinos ou feudos, classes sociais, grupos
identitários, Estados nacionais ou impérios e civilizações são exemplos de
agrupamentos utilizados como categorias de análise no esforço de compreensão do
mundo.
O reducionismo tem levado estudos baseados
em apenas uma categoria de análise. Trata-se de conduta admissível quando o
objetivo se circunscreve a uma peculiaridade exclusiva do grupo em estudo. Uma
tribo de vida simples, sob isolamento geográfico e cultural pode ser estudada
sem a ajuda de muitas categorias de análise. Estudos amplos, tendo como objeto
realidades complexas exigem muitas categorias teóricas em seu estudo. Arnold
Joseph Toynbee (1889 – 1975) estudou civilizações como categoria principal de
análise. Precisou, todavia, examinar organização, costumes e valores das
unidades menores, constitutivas do maior objeto de seus estudos, escapando
assim ao reducionismo.
As classes sociais têm sido usadas como
única variável havida como independente. Não é preciso debater o fato de que
toda variável depende de alguma coisa, que desviaria a nossa reflexão para o
exame da classificação das variáveis como dependentes ou independentes. Fenômenos
complexos, como as relações econômicas ou políticas em uma sociedade evidenciam
a fragilidade de estudos baseados em uma só categoria de análise. O
entendimento segundo o qual toda a história, entendida como fatos e atos, não
como uma disciplina específica, se resume na luta de classe, conforme Karl
Heinrich Marx (1818 – 1883) tem tido o seu reducionismo explicado como devido aos
tropos da linguagem. Caso a justificativa se aplique a todas as correntes de
pensamento poderá ser um argumento aceitável, a depender de outros fatores.
Reducionismo e especialistas
Especialistas podem incorrer em
simplificações reducionistas. Considerações apriorísticas podem conduzir a
graves equívocos. O pensador político Yoshihiro Francis Fukuyama (1952 – vivo),
na obra “O fim da História e o último Homem” concluiu, como especialista em
política, que a democracia parlamentar seria a mais perfeita forma de
organização política. Não mais haveria possibilidade de evolução. O
reducionismo político do pensador nipo-americano aceitou como premissa ideia de
George Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), que vaticinava o fim da história
quando a humanidade atingisse o ápice de suposta evolução chegando a igualdade
jurídica.
Progresso como desenvolvimento
cognitivo
Aceitar a trajetória humana como
evolutiva em razão do desenvolvimento cognitivo, a exemplo do positivismo de
Isidore Aguste Marie François Xavier Comte (1798 – 1857) é falacioso. Tal
desenvolvimento não guarda relação com o aperfeiçoamento do caráter. A evolução
é observável na ciência e na tecnologia. A física de Isaac Newton (1643 –
1727), até hoje usada nas engenharias e em tantas outras coisas, é superior às
especulações de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) no campo da Physis. Estas
nunca foram testadas e entravaram o crescimento da ciência por muito tempo. Nada
disso diminui a grandeza do Estagirita ou de suas contribuições no campo da
Filosofia. As suas reflexões eram filosóficas e em grande parte têm valor mais
pelas questões que suscitaram que pelas respostas dadas.
A tecnologia soluciona problemas
práticos valendo-se da ciência. Evolui rapidamente. Promove a solução de
problemas práticos. Aviões atualmente produzidos são superiores ao 14-bis. Na
Antiguidade os gregos cantaram as maravilhas da inventividade humana. Heróis
como Prometeu e depois Palamedes, suscitam admiração pela inventividade.
Ésquilo (525 – 455) e Sófocles (496 – 405) registram louvores aos homens
criativos. Invenções como números, letras, medidas, arado, domesticação de
animais e medicina foram louvadas. Tudo isso no campo da técnica. Não há
referência a evolução humana, do ponto de vista axiológico. A deusa Fortuna
representava uma instabilidade que afastava a ideia de progresso. Demócrito de
Abdera (460 a. C. – 370 a.C.) afastou a instabilidade da intervenção dos
deuses, mas seu pessimismo moral manteve distância da ideia de progresso como
evolução do homem.
O desenvolvimento cognitivo da
humanidade é notório. Trata-se, todavia, de manifestação diferenciada em campos
distintos. A Filosofia evoluiu lentamente. A ciência evolui um pouco mais
rápido, já que após a Revolução Científica do século XVII contam-se poucas
revoluções na ciência. A Teoria da Relatividade, a Teoria Quântica e, se considerarmos
revolucionárias no sentido definido por Thomas Samuel Kuhn (1922 – 1996), na
obra “A estrutura das revoluções científicas”, os avanços do eletromagnetismo,
para citar a Física, são algumas das poucas revoluções aludidas. Na Biologia a
descoberta dos micróbios, que aniquilou a teoria miasmática; e a descoberta do
código genético são avanços revolucionários. Aperfeiçoamentos verificados
quotidianamente não passam de complementos às poucas inovações revolucionárias,
conforme Kuhn.
A Filosofia registra avanços lenta e
progressivamente acumulados. Autores da Antiguidade ainda são estudados porque
muitas de suas contribuições permanecem válidas. A arte, porém, não permite o
registro de uma marcha de aperfeiçoamento progressivo ao longo do tempo.
O Direito tem evoluído como ordenamentos
jurídico. Mas não é uma marcha linear. No campo de Zetética, por outro lado, o
Jusnaturalismo não propicia o entendimento da essência do Direito como evolução
histórica. A vertente cosmocêntrica, fundada na ideia de uma razão cósmica, e a
tendência teocêntrica, ambas do Direito Natural, não são compatíveis com a
evolução citada. Observam-se avanços e retrocessos no campo do direito
positivo, o que desautoriza a ideia de evolução linear do saber jurídico. O
caráter polêmico do que seja aperfeiçoamento, no campo jurídico, conduz a uma
aporia no caminho da concepção evolutiva do Direito.
Jacques Le Goff (1924 – 2014), na obra
“História e memória”, registra também a evolução das instituições sociais. Não
inclui neste processo a evolução do homem, no sentido axiológico. Ressalta que
os gregos nem sequer tinha uma palavra para “progresso” e os latinos davam um
sentido material para este vocábulo.
A evolução do homem pelo aperfeiçoamento
da sociedade foi estimulada pelo iluminismo, mas não encontra arrimo em nenhum
dos aspectos aludidos. A Revolução Científica do século XVII, com seus êxitos
espetaculares, fortaleceu o pensamento que pretende criar uma ordem social
perfeita, como base na ciência sólida como a Física de Newton. O homem,
beneficiado por tal ordem, seria aperfeiçoado. O bom selvagem, como uma Fênix,
ressurgiria das cinzas de uma idade de ouro. O arquétipo de uma época
maravilhosa perdida, como nos mitos de inúmeros povos, sempre esteve presente
no pensamento político, conforme demonstra Raoul Girardet (1917 – 20113) na
obra “Mitos e mitologias políticas”.
A epistemologia da pretensão
demiúrgica
A epistemologia invocada para validar a
presunção demiúrgica dos defensores da sofocracia destinada criar um novo homem,
explicitamente ou não, tem raízes no monismo metodológico. Trata-se de uma
teoria do conhecimento que defende o mesmo método e o mesmo status de cientificidade para as
ciências da natureza e as da cultura. O caráter nomológico dos saberes
humanísticos apresentou-se com tendo a força das leis em sentido científico.
Isto é: reunindo (i) fatores em (ii) condições dadas (iii) levando
necessariamente a um resultado previsto. Previsão e certeza estariam presentes.
A reengenharia social estava posta.
A possibilidade de reunir todos os
fatores pertinentes aos fenômenos sociais e a recorrência dos fenômenos são
tidas como certas pelo monismo metódico. O socialismo real é exemplo da
sofocracia exercida em nome da classe trabalhadora por quem “cientificamente sabe”
qual é a verdadeira consciência proletária, conforme Lênin (Vladimir Ilyich
Ulianov, 1870 – 1924) na obra “O que fazer?” A dialética para Lucio Coletti
(1924 – 2001) é uma senhora de costumes cognoscitivos fáceis. Ela permite que sem
experiência proletária intelectuais cheguem a “verdadeira consciência” dos
trabalhadores, afirmando ao mesmo tempo que não é a consciência que faz a
experiência, mas o contrário, conforme o próprio Marx, na obra “A ideologia
alemã”.
O mar de cabeças degoladas pela
“fraternidade” da Revolução Francesa teve amparo no “esclarecimento” dos
iluministas. Os novos senhores da verdade substituíram o dogmatismo do clero
pelo dogmatismo de uma “ciência” nomológica. Sem muita responsabilidade
pensadores imaginaram um estado de natureza idílico entre os índios do Brasil,
dos quais só tinha notícias pelo relato de viajantes, conforme estudo de
Affonso Arinos de Mello Franco (1930 – 2020), na obra “O índio brasileiro e a
Revolução francesa: as origens brasileiras da teoria da bondade social”. Esta
foi a inspiração do bom selvagem, que tendo nascido bom, foi corrompido pela
sociedade (Jean-Jacques Rousseau, 1712 – 1778). O pensador citado nunca explicou
quem corrompeu a sociedade composta por indivíduos nascidos bons. Defensores da
sofocracia usam o disfarce da vontade popular. Algo como a vontade geral de
Rousseau, domesticada pela arregimentação e por promessas do messianismo
secular. Fazem-se muitos prosélitos desse modo. Reducionismos de classe, de
raça e do conflito criam dicotomias simplistas e sedutoras.
Diversamente das
doutrinas “esclarecidas”, o falibilismo de John Locke (1632 – 1704) não tem o
apelo messiânico ou o atrativo da “certeza” científica. Os empiristas
britânicos e o racionalismo crítico de Karl Raymond Popper (1902 – 1994)
afastam o totalitarismo destruindo a legitimação do cientificismo. O
pressuposto segundo o qual o homem se pertence e o falibilismo protegem a
liberdade. Por outro lado, a ideia de que o homem pertence à família; a uma
organização confessional ou partidária; ao Estado ou a pátria legitimam tanto o
autoritarismo revolucionário como o conservador. O totalitarismo exige o sentimento
demiúrgico que só o cientificismo e as religiões civis permitem.
Fortaleza, 21/5/21.
Rui Martinho Rodrigues.
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