ORTODOXIA E CIDADANIA
A liberdade de consciência é a fonte de
todas as liberdades, sejam negativas, com o sentido de contrapoder, impedindo a
interferência do Estado no âmbito individual; ou afirmativas, como obrigações
de fazer incidentes sobre o Estado para assegurar direito a certos desfrutes ou
realizações a partir do empoderamento para tanto. A liberdade de consciência é
um requisito das demais liberdades. A existência de uma consciência ortodoxa é
típica do totalitarismo.
Hannah Arendt (1906 – 1975) descrevia o
totalitarismo como algo radicalmente novo na política. Diferente das velhas
tiranias. Além de destruir a capacidade política dos cidadãos, fragiliza os
grupos e instituições sociais distintas do Estado; hostiliza igrejas e até a
instituição família; antagoniza o próprio tecido das relações sociais para
exercer controle. Usa um discurso logicamente consistente, mas ignora o mundo
real para exercer um papel demiúrgico. Pretende criar um homem novo. O meio da
reengenharia antropológica é a reengenharia social. Invoca supostas leis da
história ou, genericamente, a cientificidade para convalidar sua ficção a
despeito dos resultados indesejáveis de suas experiências.
Carl Joachim Friedrich (1901 – 1984)) e
Zbigniew Kazimierz Brzezinski (1928 – 2017) retratam o totalitarismo como uma
ideologia oficial (ou aspirante a oficial) de abrangência total, envolvendo
política, arte, filosofia, economia, atividade física, alimentação, tudo enfim;
partido com direção centralizada e poder absoluto, com seguidores inabaláveis; terrorismo
policial e uso de técnicas sofisticadas de controle; monopólio ou controle dos
meios de comunicação; monopólio dos instrumentos de luta armada; controle de
toda a economia. Podemos acrescentar que a criação do novo homem exige a
conquista dos corações e mentes e isso requer o controle ou destruição dos
meios de comunicação e das instituições sociais.
O controle das redes sociais e, de forma
mais ampla, dos meios de comunicação de massa, tem semelhança com o monopólio
da (des)informação. A instituição de delitos de opinião, inclusive pela criação
de tipos penais sem o devido processo legislativo, violando o princípio da
reserva legal no campo criminal, tem parentesco com o totalitarismo. Os novos
gestores da moral, ao criminalizar conceitos e valores da moral conservadora,
se mostram contaminados com o vírus do totalitarismo. O argumento da
cientificidade, que para José Guilherme Merquior (1941 – 1991) é uma herança
iluminista, tem afinidade com as descrições de Arendt e Brzezinski. E o
cerceamento da liberdade de expressão em nome da paz é totalitário.
Flagrante criado por ordem judicial,
execução de mandado judicial com violação de domicílio altas horas da noite,
abandono do processo acusatório, com a volta ao medieval processo
inquisitorial, no qual a suposta vítima preside as investigações, acusa e
julga, exercendo a persecução penal com violação da competência exclusiva do
Ministério Público; declaração explícita de uso de um “direito extraordinário”
são típicas do totalitarismo. Estamos presenciando o fortalecimento de uma
tendência para impor uma mudança cultural forçada, típica de uma atitude
demiúrgica criadora de um novo mundo e um novo homem.
O totalitarismo
invariavelmente invoca os mais altos valores da moral tradicional que visa
destruir. Defende o bem como um verdadeiro anjo de luz. Mas para realizar
maravilhas precisa ter poder absoluto e precisa satanizar quem ousa resistir
aos seus intentos.
Fortaleza, 27/3/21.
Rui Martinho Rodrigues.
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