SONDANDO O INSONDÁVEL
O passado é irrecuperável, o presente
fugidio e o futuro inescrutável é uma parêmia que merece atenção. Os
acontecimentos históricos, todavia, foram acelerados. A classificação dos
tempos segundo uma curta, média e longa duração (Fernand Braudel, 1902 – 1985)
tende a reduzir-se a curta duração. A rápida mudança de referências culturais
desorienta, configurando verdadeira aculturação. A convivência social, nada
obstante, precisa sistematizar os marcos disciplinadores das inúmeras formas de
interação. A velocidade dos acontecimentos mistura o futuro com o presente e
nos anima a sondar o insondável. Afinal, não há planejamento sem alguma
projeção no tempo.
Aurélio Agostinho de Hipona (354 a. D.–
430 a.D.) concebeu as leis, no âmbito do que ele nomeou como “cidade dos
homens”, não como o filosoficamente justo, mas como instrumento de manutenção
de sistema de interações sociais que ele designou como ordem. O justo para “a
cidade de Deus”. Podemos acrescentar: o justo, hoje, nos leva ao campo da
Zetética, que enseja reflexões intermináveis e inviabiliza a solução de
pendengas. Não admira que o Direito Processual seja o lugar por excelência da
dogmática jurídica.
O ordenamento jurídico, como positivação
do ordenamento social, considerando o brocardo forense segundo o qual “ubi homo
societas ibi societas; ubi societas, ibi jus”, descrevendo a presença universal
do Direito onde existem homens e sociedade. Juristas contemporâneos, como Claus
Roxin (1931 – vivo), identificado com o sistema teleológico-racional ou
teleológico-funcional, entende que o Direito defende a normatividade social
positivada no ordenamento jurídico, para viabilizar a convivência social
pacífica. O jurista citado não se ampara em Agostinho, mas ambos evitam a
discussão do que seja o justo nas infinitas formas de interação social.
A superposição do Direito Romano com os
costumes germânico estimulou o respeito ao direito consuetudinário, no qual não
se discute como as coisas poderiam ou deveriam ser, mas como vinham sendo com o
aval do tempo e da paz social. O incognoscível assinalado por Immanuel Kant
(1724 – 1804), do campo metafísico, cede lugar a dimensão fenomênica dos fatos
e atos socialmente relevantes. As constituições programáticas, dirigentes,
totais, positivaram o justo associando-o a princípios. Estes, pela
multiplicidade das hipóteses de incidência, são abertos a valoração da
autoridade, convite ao governo dos homens, ao invés da prevalência das leis.
O ordenamento social,
prescrevendo papéis sociais flexíveis, mas razoavelmente definidos, permite a
comunicação inteligível pelo entendimento mútuo dos signos usados nas
interações. A crítica aos padrões sedimentados pelo uso é necessária. As
práticas sociais não devem ser absolutas, devendo adaptar-se aos fatores
conjunturais e estruturais. Estes também não devem ser intocáveis. A crítica é
necessária. A liberdade de expressão é imprescindível para tanto. Ortodoxias
devem ser evitadas. O argumento de proteção de valores não pode legitimar a
censura. A liberdade de consciência é o fundamento de todas as liberdades. Um
léxico oficial, com um index de palavras proibidas, submetidas a um leito de
Procusto (também conhecido como Polipémon ou Damastes) com o objetivo de
implantar uma consciência oficial são coisas típicas do totalitarismo. A
proclamação de bons propósitos não convalida a práticas dos candidatos dos reis
filósofos, empenhados em implantar uma sofocracia, mais vulneráveis aos erros
do teoricismo, fetichismo do conceito que o bom senso do homem comum.
Fortaleza, 31/3/21.
Rui Martinho Rodrigues.