Um adeus a Arnaldo Vasconcelos, o último grande filósofo jusnaturalista do Brasil
26 de maio de 2017, 15h44
Recebi na manhã desta sexta-feira (26/5) a triste notícia da morte de Arnaldo Vasconcelos, professor aposentado de Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) e professor decano do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Mais que tudo isso, Arnaldo Vasconcelos foi meu professor no primeiro ano da Faculdade de Direito, em 1992, há exatos 25 anos. Desde então, tornou-se meu amigo e uma personalidade importante para minha formação intelectual e acadêmica. Com ele aprendi sobre os meandros da secular disputa entre a Escola do Direito Natural e o Positivismo Jurídico, conheci autores como Kelsen (seu principal alvo teórico em quase todas as aulas), Carlos Cossio (o líder da Escola Egológica do Direito, da qual Arnaldo Vasconcelos foi o último representante no Brasil), Radbruch, Jellinek, Rudolf Stamler, Karl Larenz e tantos outros nomes que passeavam por seu livro Teoria da Norma Jurídica (editado pela Forense e depois pela Malheiros), a bíblia de todos os alunos de Teoria Geral do Direito na UFC do meu tempo.
Aqueles seis meses como aluno de Teoria Geral do Direito ajudaram a moldar meu pensamento e me convencer de que era no Direito que eu encontraria as respostas às minhas inquietações intelectuais. Tive o privilégio de ser aluno de nomes como Raimundo Bezerra Falcão (meu orientador), Agerson Tabosa (nosso grande romanista), José de Albuquerque Rocha (processualista crítico) e Bomfim Viana (um comercialista incomparável), para ficar apenas em alguns nomes da geração de Arnaldo Vasconcelos. Especialmente Arnaldo, Falcão e Bomfim representavam um perfil muito similar em suas origens e em sua formação profissional: jovens vindos do interior, que encontraram no serviço jurídico do Banco do Nordeste do Brasil um espaço de desenvolvimento intelectual e técnico-jurídico dos mais privilegiados, com uma remuneração que lhes permitia formar grandes bibliotecas e dedicar-se à docência sem preocupações maiores com a subsistência.
Arnaldo Vasconcelos, assim como outros de sua geração, ingressaram na docência universitária em meio ao processo de transformação do antigo regime de catedráticos no modelo atual de Departamentos. Ele representava uma mudança no modelo aristocrático de então, e seu perfil, sua postura e suas atitudes reforçaram esse novo sistema. Arnaldo era antes de tudo um maverick. Não transigia, não assumia compromissos que implicassem concessões morais, não participava de camarilhas acadêmicas. Não era pomposo. Ria de si mesmo, não se levava a sério. Mas sabia ser ácido e frontal em suas críticas e em sua visão de mundo. Conviver com Arnaldo era compreender esse lado e tolerar sua franqueza, porque atrás dela escondia-se a lealdade.
Suas aulas eram um pequeno espetáculo. Ele usava o método socrático. Os alunos eram confrontados com questões de alta indagação filosófica ou jurídica com a simplicidade arnaldiana, mas com toda agressividade do método socrático. As certezas eram desconstruídas. As contradições no pensamento de autores clássicos e contemporâneos eram expostas sem piedade. Rapidamente aprendia-se que estudar temas filosóficos exigia mais do que uma atitude leviana ou leituras superficiais. Em meu tempo, formávamos grupos de estudo para estudar Teoria do Direito, tamanho era o estímulo e também o receio de não conseguir acompanhar o refinamento das ideias de Arnaldo Vasconcelos. Ser monitor de Teoria Geral do Direito era um símbolo de status na faculdade. Representava a entrada em um privilegiado círculo de discípulos de Arnaldo Vasconcelos e uma carta de apresentação na vida profissional.
Ele não era acometido da grafomania, o mal contemporâneo dos escritores de Direito, agravado pela internet, pelo Google e pelo recorta e cola. Comportava-se como um artesão da escrita. Não é sem causa que pertenceu à Academia Cearense de Letras Jurídicas, à Academia Cearense de Língua Portuguesa e ao Instituto Brasileiro de Filosofia. Além de graduado em Direito, era licenciado em Letras (1966 e 1967) na UFC. Seus gostos literários eram tão refinados quanto sofisticados e se confundiam com suas paixões pela música e pela pintura. Suas obras literárias seguiram um programa muito específico: combater o positivismo jurídico e converter seus alunos (e também seus colegas) ao jusnaturalismo.
A Teoria da Norma Jurídica, que é sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade Nacional de Direito (UFRJ), em 1977, foi seguida por outras obras com idêntico propósito. Ele defendeu sua tese de doutoramento com o título Teoria Pura do Direito: Repasse Crítico de seus Principais Fundamentos. É provavelmente o ataque sistemático mais estruturado à obra de Kelsen já escrito em língua portuguesa. Longe de revelar desapreço ao autor austro-húngaro, esse livro é uma homenagem sincera de um adversário intelectual. Em Direito, Humanismo e Democracia (segunda edição de 2006), Arnaldo Vasconcelos reabilita os sofistas e põe em xeque diversos dos fundamentos platônicos sobre democracia e liberdade.
Todas essas obras foram marcadas pela polêmica e pelo desassombro com as disputas intelectuais. Essa mesma coragem fez com que Arnaldo Vasconcelos, ao longo de sua vida como professor universitário, chefe de departamento e coordenador da Faculdade de Direito, experimentasse o sabor amargo da academia. Ele tentou provar que era possível a docência levada a sério, responsável e coerente. E exigiu isso dos colegas e dos alunos. Muitas vezes não foi compreendido, e padeceu com perseguições e outras vilanias.
Ele sempre teve consciência do preço que pagou por essas escolhas. Aposentado da UFC, foi recebido como uma estrela na Unifor e incorporado com honras em seu programa de pós-graduação. Quem conheceu de perto Arnaldo Vasconcelos sabe que seus anos na Unifor podem ser definidos singelamente como “felizes”. Ele se renovou naquela instituição. Trabalhava com paixão, cercado pelo respeito de alunos e de colegas. Até o último dia, recebeu esse tratamento especial, e deixo aqui meu reconhecimento a seus dirigentes, professores e alunos pelo presente que lhe deram, no crepúsculo da vida de um grande professor.
Minha gratidão a Arnaldo Vasconcelos não tem limite. Assim como meu reconhecimento.
Sua perda é uma lembrança dolorosa de que a "pálida operária", a "indesejada das gentes" está sempre a nos rondar e começa a levar para junto de si até mesmo aquelas figuras que julgávamos que não seriam retiradas de nosso convívio. Eram árvores frondosas, cuja queda deixa clareiras enormes na floresta da vida.
Arnaldo Vasconcelos, apesar de tantos méritos, acumulou alguns fracassos. E talvez esses fracassos sejam sua grande vitória.
Seu projeto de restauração do jusnaturalismo fracassou. O positivismo, a cujo ataque dedicou 50 anos de docência, foi derrotado. Mas em seu lugar não triunfou o jusnaturalismo, e sim um neoconstitucionalismo pós-positivista absolutamente flácido, metodologicamente irreconhecível e piegas em seu discurso politicamente correto.
Sua luta por uma universidade séria e melhor... Bom, sobre isso, eu silenciarei.
Mas esses fracassos só o fortalecem. Apesar de tudo, ele lutou até o último minuto por suas crenças. Ele não desistiu. Ele não se amoldou aos apelos do sucesso fácil e da simpatia falsa. Arnaldo foi ele e nunca usou a máscara das conveniências. Termina hoje sua existência na terra com o respeito que só os dignos conseguem inspirar. E essa vitória foi conquistada à custa desses aparentes fracassos.
Despeço-me do amigo, do professor, do mestre e do exemplo.
Obrigado, Arnaldo Vasconcelos. Seu nome não será esquecido.
Otavio Luiz Rodrigues Junior é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.
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