A importância de se falar da mutação ideológica de "Raízes do Brasil"
LUIZ FELDMAN
21/08/2016 02h02
RESUMO O 80º aniversário do clássico de Sérgio Buarque de Holanda suscita
debate na imprensa, iniciado na "Ilustríssima" do último dia 7. Neste texto,
estudioso de "Raízes do Brasil" analisa como mudanças feitas por Buarque
para a segunda edição (1948) de sua obra mais famosa a aproximaram do campo
progressista.
Os 80 anos de "Raízes do Brasil" estão sendo bem comemorados. Nas últimas
semanas, um debate plural, em diversos veículos, vem dando mostras de por
que o ensaio de Sérgio Buarque de Holanda continua um clássico do pensamento
nacional. A obra segue capaz de suscitar fortes discordâncias e críticas e
de sobreviver a elas.
Mas, como registrou Fernando Henrique Cardoso nas páginas da "Ilustríssima"
de 7/8, é tempo de repensar a qualificação de "Raízes" como um clássico de
nascença. Há oito décadas, a visão de Sérgio Buarque sobre o país diferia em
importantes aspectos daquela que mais tarde se consagrou. Como procurei
discutir em livro sobre o tema, as mudanças no texto foram fundamentais para
conferir à obra o sentido progressista que hoje lhe é amplamente atribuído.
CORDIAL
Tome-se, inicialmente, a forma pela qual Sérgio Buarque abordava sua criação
mais famosa, o homem cordial. A cordialidade foi enunciada em um diálogo
criativo com os grandes intérpretes do Brasil à época, Oliveira Vianna e
Gilberto Freyre. Esse vínculo foi eclipsado pelas críticas contundentes ao
jurista fluminense e pela posterior supressão de generosas referências ao
sociólogo pernambucano, mas é revelador de quanto "Raízes" dialogava com o
pensamento político e social brasileiro dos anos 1920 e 1930 ao formular o
seu diagnóstico central.
A cordialidade era uma síntese do legado colonial ibérico. De um lado, forte
desejo de intimidade no trato pessoal, a humanizar as relações sociais no
país; de outro, predomínio das emoções que impedia a fixação de normas
impessoais e a construção da esfera pública.
A atitude de Sérgio frente a essas duas dimensões era ambígua: reconhecia a
segunda, ao modo de Vianna, mas celebrava a primeira, na linha de Freyre. A
nota de entusiasmo era perceptível.
A partir da segunda edição, de 1948, a cordialidade passa a ser vista
basicamente por ângulo negativo. O autor risca um trecho que aproximava a
cordialidade da bondade e acrescenta um esclarecimento (ou retificação) do
conceito, ao asseverar que a cordialidade abrangia tanto relações de amizade
quanto de inimizade. Faz, ainda, uma ressalva crucial: a cordialidade não
resistiria ao desmoronamento do mundo ibérico em que havia surgido.
Nesse ponto, a reflexão histórica do livro se liga à sua discussão política.
"Raízes" sempre se propôs a enfrentar a questão de como o país poderia
fundar uma ordem pública e urbana moderna sobre a base desagregante de uma
tradição familiar e rural. O que se altera são os termos da resposta,
reformulada em 1948 em meio a vestígios da argumentação de 1936.
PROGRESSISMO
A edição original de "Raízes" avaliava que a progressiva urbanização,
tornada irreversível pela abolição, aniquilaria nossas raízes ibéricas. O
"cataclismo", entretanto, seria "lento". O personalismo, grande princípio
político herdado dos portugueses, ainda tinha um papel a desempenhar na vida
nacional durante a transição para o novo ciclo cultural representado pelo
"americanismo".
"Entre nós", lia-se em 1936, "o personalismo é uma noção positiva talvez a
única verdadeiramente positiva que conhecemos. Ao seu lado, todos os lemas
da democracia liberal são conceitos puramente decorativos, sem raízes fundas
na realidade". Essa passagem, depois excluída, ajudava a explicar a célebre
frase sobre os brasileiros como desterrados em sua terra.
Personalismo e cordialidade são noções distintas, mas compõem o substrato de
cultura contra o qual variadas doutrinas políticas importadas tentaram e não
conseguiram se afirmar. Esse desajuste fora a razão do "lamentável
mal-entendido" da democracia liberal no Brasil do século 19 e seria também,
vaticinava o autor, a razão do insucesso dos totalitarismos que se
anunciavam no horizonte.
Governar o Brasil exigia composição. Aqui, a abordagem ambígua da
cordialidade se rebatia sobre a solução política do livro. A modernidade,
sob forma de civilidade, só se implantaria no Brasil pelo "contraponto" com
a tradição cordial. Aquela nos daria ordem, esta preservaria nossa
identidade.
Sérgio Buarque não indicava que a democracia popular fosse o ponto de
chegada ideal, nem sequer provável, desse processo. Tampouco o era o
totalitarismo: o autor dizia preferir "outros recursos" para a
"estabilização" do organismo nacional, embora rejeitasse como fraude liberal
a "tese de que os expedientes tirânicos nada realizam de duradouro".
Qualquer que fosse a posição última e exata de Sérgio Buarque, seu livro de
estreia seria utilizado como base de uma das principais peças doutrinárias
do Estado Novo. Em "Força, Cultura e Liberdade", de 1940, Almir de Andrade
partia da ideia de homem cordial para propor sua versão do contraponto entre
cordialidade e civilidade: um "equilíbrio entre a tolerância e a força",
doutrina originalmente brasileira de governo.
A instrumentalização do ensaio em 1940 poderia ser mais uma entre as várias
razões do desconforto de Sérgio Buarque com a edição original de "Raízes". O
certo é que, em 1948, o livro ressurge com a defesa engajada da ascensão das
classes populares ao poder.
A tese é conhecida: a tradição ibérica como estorvo da travessia do passado
privatista para o futuro democrático. A cordialidade passa a ser vista antes
como obstáculo à civilidade do que como alternativa de fraternidade. Dentro
do possível, as ambiguidades da discussão política são apagadas.
É só então que se afirma, no sétimo capítulo da obra, intitulado desde
sempre "Nossa Revolução", o brilhante jogo metafórico da "revolução
vertical" que, ao trazer à tona os estratos oprimidos em substituição às
"camadas superiores", corrigiria a sociedade malformada "desde as suas
raízes". O aclamado progressismo do livro teve, aí, sua asserção definitiva.
José Murilo de Carvalho observou que "Raízes" teve um destino singular entre
nós. Retomar as diferenças entre suas edições, sem tratar o texto definitivo
como o único nem o original como o autêntico, é uma forma de compreender
melhor a complexa trajetória da obra. "Raízes" sempre ofereceu uma
impressionante visão histórica da formação nacional brasileira. Mas, entre
1936 e 1948, sua mensagem política se transformou. Bom assunto para a
celebração desse clássico por amadurecimento.
LUIZ FELDMAN, 31, é ensaísta e diplomata, autor de "Clássico por
Amadurecimento: Estudos sobre 'Raízes do Brasil'" (Topbooks).
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