Na Hipocrisia do mundo você se descobre,
e, se encontra, quando vive um grande amor
Vicente Alencar

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O SILÊNCIO DAS MULHERES, AO LONGO DOS SÉCULOS - Maria Helena Kühner

O SILÊNCIO DAS MULHERES, AO LONGO DOS SÉCULOS
                                                                      Maria Helena Kühner 

Artigo resultante da palestra sobre o tema, sugerido pela União Brasileira de Escritores. Realizada no dia 20 /9, na Academia Luso-Brasileira de Letras, provocaria animado e participativo debate, por 2 hs. e meia, confirmando o interesse que esse tema suscita.


Desde o início dos tempos a Mulher se viu associada à Natureza e à Terra, como provam os mitos mais antigos. Filhos do Caos, Urano e Gaia (o Céu e a Terra), geram os Titãs, os Cíclopes, e os Hecatônquiros, três Gigantes de 50 cabeças e 100 braços. Mas Urano, temendo ser destronado pelos filhos, os enterra nas profundezas do mundo subterrâneo. E Gaia, indignada, pede vingança. O Titã Cronos, seu filho mais novo, a atende: castra o pai (separando o Céu da Terra) e assume o governo do mundo. Casa-se com sua irmã Réa  ( para os romanos, Cibele ), portadora e doadora da fertilidade que vai propiciar a agricultura, necessária à sobrevivência humana, e torna-se a Grande Mãe dos homens. Mas Cronos, com o mesmo temor do pai, devora e engole os filhos que nascem. O que leva Réa a dar-lhe lhe uma pedra para engolir, conseguindo salvar um, Zeus ( Júpiter, para os romanos ) que, escondido em uma caverna e criado por pastores e agricultores, virá a trazer uma nova ordem, tornando-se o Pai dos deuses e dos homens.
Mas os mitos falam também de Pandora. Se Prometeu,"o que pre-vê", rouba dos deuses o fogo ( associado à sabedoria e à capacidade de, pela previsão, evoluir ) e o traz à humanidade, seu irmão gêmeo, Epimeteu, é "o que só vê o acontecido".  Esquecendo os conselhos do irmão Prometeu, de jamais aceitar um presente de Zeus, casa-se com Pandora, a 1ª mulher, por ele enviada.  A quem, Zeus no casamento, dá uma caixa, dizendo-lhe que nunca a abra. Mas, levada pela curiosidade, Pandora desobedece, abre a caixa e dela saem todos os males que irão afligir a humanidade (em outra versão, todos os bens, que voltam para morada dos deuses e são assim perdidos pelos homens). Só fica no fundo da caixa a Esperança, em sua permanente Espera.

Na linguagem dos mitos já surgem os caminhos, marcos e marcas que vão traçando a trajetória humana e definindo sucessivas idades ou gerações: a idade de ouro, em que Gaia propiciava fartas colheitas e os homens conviviam em harmonia, sem cansaço, doenças ou dores. Mas a idade se encerraria pelos terríveis erros de Cronos. Surge a idade de prata, na qual os deuses criam outra raça de homens, incapazes e tolos, alimentados por suas mães em interminável adolescência, sem noção de bem e mal, vivendo do que tomavam pela força e matando-se uns os outros. Não ofereciam aos deuses sacrifícios (sacri-ficar = tornar sagrado) e Zeus, ofendido por essa arrogância, elimina a todos. Passam à idade do bronze, de guerreiros que, com as armas por eles próprios criadas, não mais cultivam a terra, vivem da caça e da coleta e, orgulhosos, tentam tomar o Olimpo, a morada dos deuses que, irados, os exterminam.  A quarta raça ou geração é a que surgiria com Hércules, Orfeu, Jasão, Aquiles, Agamenon e demais heróis que, com suas ações, iriam trazer a essa geração o título de Idade Heróica. Convivendo com os deuses, ou mesmo filhos de algum deus, eram por eles protegidos. E neste período surgem importantes cidades, como Atenas, Esparta, Creta,  Micenas, Corinto. Mas essa geração pereceria nas lutas fratricidas nas sete portas de Tebas ou nas que se travaram por dez anos em Tróia.  A quinta geração já não seria mais criada por Zeus, nem nasceria no seio da Terra. A idade mítica se fecha com a geração do ferro, cuja raça nasce do homem e da primeira mulher, Pandora. Sobre essa quinta raça cairão todos os males da caixa aberta por Pandora: dor e doença, miséria, inveja, rudeza. Presa ao fundo da caixa, Espera/Esperança não fazem parte da herança dessa raça de humanos. Vivem por viver. Vagando a esmo no deserto ou na imensa floresta. Apenas caminham. 

Nesse traçado se vê que o primeiro momento é o do olhar, do ad-mirar, com espanto ou encanto, para o vazio em torno. Nada ainda pronto, tudo por des-cobrir. A própria verdade será um des-velar, um arrancar de véus, o encanto e espanto desse olhar provocando a palavra - termo cuja origem, parábola, fala dessa expressão matizada em que o real e o imaginário se confundem,  e faz dos mitos a primeira tentativa humana de apreender a realidade e estruturar seu mundo, buscando o sentido oculto das coisas, tentando entender a origem de todas as coisas criadas.  E essa Natureza ambivalente, em que ora vê deusas doadoras e protetoras, que representam a terra fecunda e as águas fertilizantes ( Cibele, Deméter, Rea, Gê, Isis, Miriam, Maya ), ora deusas maléficas, pressionantes,  pluralizadas e dominadoras (As Eríneas, as Parcas, as Moiras, as Hárpias), que o ameaçam com o extermínio ou a involução em seu corpo de água e terra.
Natureza cifrada, que desafia o homem: "decifra-me ou te devoro". Desafio a que Édipo, ainda de pés atados ( é o que significa  seu nome ), unido à Natureza-Mãe vai dar resposta ao se confrontar com essa Esfinge enigmática e voraz, que lhe pergunta: "Qual o animal que de manhã tem quatro pernas, de dia, duas e ao anoitecer, três? " E a resposta traz a imagem do decifrador vitorioso: "O homem". A Esfinge se precipita do alto dos rochedos e Édipo, unindo-se a Jocasta, sua mãe, após matar o pai, Laio ( pois uma nova ordem pressupõe sempre a ultrapassagem da anterior) caminha para a cidade, onde terá inicio sua história.

No principio o Verbo.  O Homem, em silêncio, não é ainda homem, é apenas um ser vivo, como os demais. Só quando experimenta e descobre a fala, que o define e distingue, é que se torna humano.  Mas a fala não é apenas algo mais: a fala é o anseio de falar o Sonho, o impulso de rebelar-se contra a herança de Pandora, de vir a fazer, do Sonho, pro-jeto capaz de lançar adiante. Porque no Sonho o homem pode ver-se livre de Pandora e seus males, no sonho o homem pode ultrapassar a submissão, e fazer, da Espera, Esperança. Ao falar o sonho o homem se vê em tensão entre o submeter-se e o rebelar-se. O rebelar-se do Sonho lhe acena com a promessa de recapturar sua autoctonia, a completude, que vai exilar Pandora, e, com ela, a falta. Descobre a força do Sonho e a força da Fala. E descobre que, juntos, esses dois poderosos aliados lhe permitem derrotar Pandora. A unidade primordial, a plenitude intrínseca à autoctonia, havia sido destruída por Pandora. Agora reinava a falta. Mas o homem descobre que o Sonho e a Fala, juntos, amalgamados, têm o poder de desenterrar as ruínas do reino que Pandora destruiu. E nessas ruínas ele reencontra a beleza do perdido. E busca reconstruir as ruínas. Para nelas poder morar. Descobrindo a força e o poder da fala, o homem irá falar. Com a ajuda de Mnemósine, que impede o esquecimento recolhendo o que seu irmão Cronos vai deixando pelos caminhos, vai ultrapassar os balbucios de uma sociedade ainda extremamente dependente da natureza-mãe, e vai falar, reconstruir, em seus mitos e lendas, a própria história, e o que ela diz da vida, da morte, de suas vidas e suas mortes, de seus amores, suas dores, seus caminhos. Caminhos que o levarão à cidade e, com ela, a uma nova ordem que a cena teatral grega já ilustra com suas duas arquibancadas em semi-circulo uma diante da outra, deuses e homens frente à frente e, ao centro, o ator/intérprete, Prometeu que, mesmo amarrado à rocha, com a águia lhe roendo o fígado que se recompõe seguidamente, afronta Zeus, até ser libertado por um herói humano, Héracles ( Hércules, para os latinos).

Na polis grega nascente a tripartição do poder social: sacerdotes, guerreiros, produtores   (pastores, agricultores). Na Ágora, lugar de discussões e decisões, só cidadãos.  Mulheres e escravos sem direito à cidadania. Na divisão de papéis sociais, para estabelecer e manter a ordem desejada,  cabe ao homem o espaço público, e à mulher o espaço privado, onde exercerá seu papel de esposa e mãe.

Onde a voz, a subjetividade, o lugar da fala feminina nessa nova ordem social, que assim se afirma como patriarcal, masculina?
Sobredeterminada pelo elemento natural, que os mitos assinalam, pela tecnologia agrícola e por seu lugar social, ela não vai ter lugar próprio de manifestação e expressão. Se a nova ordem se estabelece em nome do Pai, a subjetividade feminina vai ser interpretada, isto é, falada por normas e códigos estabelecidos pelo homem.
O que não significa ausência. Mas poucos nomes femininos aparecem. Há mulheres, como Safo de Lesbos ( Séc. VII e VI A.C.) , poetisa e educadora, considerada a criadora da poesia lírica (tal como Homero o foi da épica). Sua obra seria posteriormente reunida por estudantes de Alexandria em 10 livros de poesia. Mas é com ironia crítica que é lembrada nos adjetivos a ela referentes ainda hoje: "safada" e "lésbica" não são me geral ditos em tom elogioso... Aspásia de Mileto ( Séc. 470 a 410 A.C.) foi do círculo político de Atenas, sofista competente e assessora de Péricles. Mas é como tal que seu nome fica registrado (ratificando o senso comum quando ainda hoje diz que "atrás de todo grande homem existe sempre uma grande mulher"...)  Diotima da Mantineia ( Séc. V A.C.) é citada como sábia no Banquete de Platão, que a ela atribui a melhor teorização sobre o que é o Amor. Mas há quem diga que ela sequer existiu, é personagem por ele criada. Tal como o são as inúmeras e famosas personagens femininas - Antígona, Electra, Helena, Fedra, Penélope, Cassandra - sempre faladas por, descritas e narradas pela fala e interpretação masculinas.

Que imagem ou modelo de mulher nelas surge? Poderíamos lembrar a fala de Andrômaca em "As Troianas", a peça de Eurípedes que canta/conta o destino das mulheres que, após o estratagema do cavalo de Tróia, viram sua cidade tomada, seus guerreiros mortos ou assassinados e elas próprias se vendo levadas como amantes ou escravas dos vencedores.  É de Andrômaca (cujo nome em grego significa "a que luta como homem"), viúva de Heitor, que se tornará mulher do filho de Aquiles, a fala em que diz:

Todos os bens imagináveis que dão valor à mulher
eu me empenhava em praticar no lar de Heitor.
De inicio, há lugares que uma esposa,
embora procedendo bem, só por freqüentar
merece a acusação de não se dedicar à casa.
Longe de procurar lugares desse tipo,
eu ficava no lar e tinha mil cuidados
para impedir que transpusesse suas portas
a vil maledicência própria das mulheres.
[.......] Uma boca silenciosa, e um rosto sempre sereno
eis o que eu oferecia a meu esposo."

A ótica masculina é evidente, não só nos valores, espaço, comportamento e atitudes  que atribui ( ou sugere e aconselha) ao feminino, como até mesmo nos termos e expressões usados:   para evitar "a vil maledicência própria das mulheres"...
O esquema de valores esboçado resume o que cabia à mulher: manter a passividade, a submissão, a repressão, a serenidade, o silêncio.
O silêncio. Silenciadas, não silenciosas.  E apenas faladas por.

Mesmo quando sob ótica outra, que poderia ser então considerada "feminina", por falar em nome das "leis naturais" ( morte e vida, o afeto, o direito de escolha e de expressão, a justiça dos deuses, ou seja, natural ), a transgressão do modelo dado tem um preço que a peça "Antígona" de Sófocles, vai fazer ver.
Antígona era filha do Rei Édipo, de Tebas, nascida de sua união com a mãe, Jocasta. Expulso do reino e perseguido pelas Fúrias, Édipo se exila. O poder devendo então passar a seus filhos, Etéocle e Polinice.  Mas, ao final de seu reinado, Eteócle recusa passar o poder ao irmão, gerando uma luta fratricida em que ambos morrem. Creonte, irmão de Jocasta, assume o trono e, sem dar ouvidos ao adivinho Tirésias, que o adverte das possíveis conseqüências de seu ato, decreta que Etéocle seja enterrado com honras e corpo de Polinice seja deixado sem sepultura - o que, segundo as crenças gregas, o deixaria vagando sem rumo por toda a eternidade. E Antígona, afrontando o édito real, sepulta o irmão.
As razões de seu comportamento e atitude ficam evidentes em falas de seu diálogo e confronto com Creonte, seu Rei e tio:
Creonte - Me diga em poucas palavras: sabias que um decreto meu proibia o que    
                 fizeste?
Antígona- Não poderia ignorar: era público.
Creonte - E te atreveste a desobedecer a minha lei?
Antígona - Sim, porque não foi Zeus que a promulgou.
  nem a Justiça, companheira dos deuses subterrâneos,
  que a ditou aos homens.
  Não creio que teus decretos tenham tal poder
  que permitam a um mortal violar leis divinas
  leis que não estão escritas, mas são inevitáveis.
     [....... ]
  Sei que hei de morrer - seria inevitável.
  mesmo sem teu édito. E morro antes do tempo [.....]
  Mas não me assusta a morte que me espera.[......]
  Se te pareço insensata por agir como o fiz
  é como se me acusasse de insensatez
  o maior de todos os insensatos
    [.......]
Creonte-.[........]  Sei de potros indóceis
                 que são contidos por um freio pequenino. O orgulho
                 não cai bem a quem depende da vontade alheia.
                          [......]
Antígona - Todos os que me ouvem ousariam me aprovar
                se o medo não lhes fechasse a boca."
E o Coro comenta:
             Esta sabia perfeitamente o que fazia
             ao transgredir a lei apregoada.
               E agora, pela segunda vez, ufana-se do que fez e
               e se mostra insolente. Dos dois seria ela o homem e não ele
               se a deixasse vencê-lo impunemente "

E, na tragédia, Antígona é realmente castigada, condenada a morrer emparedada dentro de uma rocha. E o comentário final do Coro mostra a hierarquização de papéis sociais, já então vigente, e que iria perdurar por séculos.
Cassandra, também personagem famosa, pagará o preço de outra forma: recebe de Apolo o dom da profecia, que, ao recusar a seguir o coito com ele, será acompanhado de uma maldição: por mais válido e importante que seja o que diga, ninguém lhe dará crédito, e para seu desespero, verá os males por acontecer ( ex: a guerra de Tróia ) e não lhe darão ouvidos.

A trajetória humana irá assinalar os marcos e marcas do poder, domínio e controle masculinos ao longo dos séculos, estendendo os territórios à amplitude de impérios, a ação se desdobrando progressivamente com a expansão comercial que levaria descoberta e ao desenho de um Mundo Novo, as invenções que culminariam com a revolução industrial e abririam às novas tecnologias do futuro.
Mas quantos já ouviram falar de uma Hildegarde de Bingen, cuja vasta obra, reunindo os conhecimentos até então existentes ligados à biologia, à botânica, à astronomia e à medicina, ficou preservada apenas por ser abadessa de um mosteiro em uma época em que a Igreja tinha inegável poder?  Tal como sucedeu a Heloísa de Paráclito (Séc.XII ) cujo tio foi membro influente do Clero e lhe propiciou formação vasta e erudita, dada pelo filósofo Abelardo, seu professor e amante, com quem teria uma relação amorosa e, dela, um filho.  O que leva à castração de Abelardo pelo tio, e o leva a tornar-se monge e fundador de uma comunidade, e Heloísa a ser a abadessa do convento de Argenteuil. Mas a dupla Abelardo e Heloísa ficaria muito mais conhecida apenas por essa relação amorosa...  Ou sabem quem foi Catalina de Siena (Séc. XIV), que liderou toda uma comunidade de homens e mulheres e foi importante reformadora religiosa, de erudição comprovada não só em obras literárias como nas 381 cartas de sua influente correspondência, inclusive com Papas, como  Gregório XI e Urbano VI - o que levaria Paulo VI, em 1970, lhe dar o título de Doutora da Igreja?  Ou conhecem Maria ou Miriam (Séc. I D.C.) como fundadora da alquimia, e sabem que é por suas descobertas sobre o ponto de ebulição da água que seu nome vem associado a um termo banal, de uso corrente, o banho-maria?

A hierarquização apontada manteria por séculos essa concepção autoritária e vertical na relação homem/mulher. O historiador Michelet (1798 ) assinalaria no decurso da História a correlação, permanente, Mulher-Natureza e Homem‑Cultura. O Renascimento seria caracterizado como um "Movimento Anti-Natureza", e muitos de seus atos, cujos efeitos seriam mais tarde notórios, apontados como "des-naturados". O próprio Michelet diz que faz parte de "uma geração cevada no silêncio, na qual a ruptura com o passado e a tradição foi quase total......pois a palavra de ordem era o silêncio”. Nascido em 1795, ele precisaria resgatar do silêncio a própria história da Revolução (Francesa ), "por seu amor aos mortos e como reação à aridez da razão logicista e o cálculo utilitarista do passado".  E os sentimentos e as emoções profundas da História foram revividas por Michelet porque ele reviveu suas causas dentro de si. Tal como Rousseau, em suas “Con­fissões”, o historiador resgata a si mesmo quando resgata o passado e busca conciliar os acontecimentos com sua identidade pessoal.

Mas Evelyne Berriot-Salvadore,  em "Un corpos, un destin. La femme dans la médicine de la Renaissance" ( 1993), traz um dado para nós, hoje, provocador de espanto e de risos, registrado por Roberto Muchembled em livro que eu traduzi, "A História do Diabo". Diz ele: "No Renascimento, em todos os ramos do conhecimento e da vida social operou-se uma redefinição da natureza feminina. A medicina, o direito, a propaganda difundida nas imagens e pinturas - para limitar-nos apenas a alguns setores - reforçaram a idéia de (grifos nossos) uma indispensável vigilância para controlar este ser imperfeito, profundamente perturbador. Os médicos viam na mulher uma criatura inacabada, um macho incompleto, daí sua fragilidade e sua inconstância. Inútil, canhestra, e lenta, desavergonhadamente insolente, mentirosa, supersticiosa e lúbrica por natureza, segundo inúmeros autores, ela só era movida por movimentos de seu útero, do qual procediam todas as suas doenças, sobretudo sua histeria. Mulher-útero, ela trazia ao mesmo tempo em si o poder da vida e o poder da morte.[........] A visão da feminilidade mesclava, inextricavelmente, as teorias eruditas, produzidas pela Teologia, a Medicina e o Direito, com os preconceitos populares correntes. Entre os tópicos religiosos - que representam 3/4 desse corpus, predomina a idéia do pecado.  Que, ao que dizem,  a mulher pratica com o maior despudor:  primeiro, o da luxúria, seguidamente mostrado, depois a inveja, a vaidade, a preguiça, e por fim o orgulho. Este sistema de pensamento foi produzido por homens e para seus semelhantes a fim de preveni-los contra as armadilhas femininas, diretamente inspiradas por Satã [.........] Essa ligação da mulher com o Diabo, ou seja, o fato de "terem o diabo no corpo" fundamentava a superioridade masculina e explicava a sujeição exigida das mulheres no conjunto da sociedade. Mostrando que a mulher é inferior por natureza, isto é, pela vontade divina."
Para quem se lembra dos seguidos momentos de "caça às bruxas" ou das "feiticeiras" queimadas na fogueira ao longo das inquisições da História, da Idade Média ao século XVI, ou o adjetivo "diabólica" tantas vezes (des)qualificando a mulher, o texto citado dispensa maiores comentários, pois o que é aí dito fala por si. Como dispensa comentário o que diz o referido historiador Michelet em outra obra sua "A Feiticeira": "É certo e evidente que não havia bruxas, mas as terríveis conseqüências da crença em bruxas foram as mesmas que se verificariam se elas tivesse tivessem existido. " Acrescenta: "É impossível falar sobre este assunto sem que a pena grite de indignação." E faz toda uma análise da condição feminina na Cristandade medieval, e em especial a daquelas que eram chamadas de bruxas ou feiticeiras, para em seguida serem encerradas em conventos, enterradas em claustros, ou queimadas vivas nas fogueiras. Mostrando que, por monstruosa perversão de idéias, a Idade Média via a carne como "impura", o corpo feminino como um "convite ao pecado", e a mulher por tal "associada ao diabo", como vimos. Esse anátema lançado ao corpo é um dos itens que explicam ter aquele período passado à História como a "era das trevas", sob o pesado jugo de monarquias teocráticas e papados tirânicos. O que o Iluminismo, até no termo que o define, iria posteriormente denunciar e condenar. E levaria Nietzsche a assinalar algo que não pode ser esquecido: "não se ataca o corpo sem atacar a vida em sua raiz."

Se de novo perguntássemos: onde, então, a presença ou a voz feminina? 
Ofélia, a famosa personagem do Hamlet, de Shakespeare, nos diria: "Nós sabemos o que somos, não sabemos o que podemos ser." A idéia de poder ( tanto o poder, substantivo, quanto o poder, verbo que diz eu posso, nós podemos (Yes, we can, foi o lema de campanha de sua Obama à presidência...) é importante. Cabe repensar o que diz Muniz Sodré: " O poder significa dominação através da força. Mas nenhuma força se mantém por dispositivo de força strictu sensu.  O poder é, na verdade, um conjunto de efeitos da força inicial. Esses efeitos são da ordem do sentido, da ordem da palavra. Portanto todo poder é, em seu exercício, um conjunto de signos de poder. O poder precisa sempre se justificar, precisa sempre falar. Precisa convencer, seduzir, persuadir. Para tal existe a palavra do poder, ou melhor, o poder da palavra.  Acho que até o amor é, na verdade, da ordem do poder das palavras. As palavras desencadeiam, as palavras fazem. Quando eu digo "prometo fazê-la feliz" essa palavra prometo é performativa, a ação já está realizada na palavra. Não precisa ser falso ou verdadeiro. Aí já está dada uma ação - eu prometo. Há uma dimensão de palavras em que a ação já está dada. Na forma eu te amo, eu te quero, já há uma ação, uma carícia na própria palavra. Esse poder desencadeador atua falando. Portanto, não é a fala do poder, mas o poder da fala. Essa a diferença."

A sedução, tradicionalmente atribuída à mulher,  é , na realidade um exercício de poder, que se dá através da fala. Cabe aqui uma observação que não pode ser ignorada: a ideologia da relação homem-mulher foi construída por homens, ou seja, não houve a fala feminina, a palavra feminina. Quando a mulher começa a falar, a falar como expressão de si mesma, sem essa preocupação de exercitar ou exercer um poder, essa fala, silenciada por séculos, este silêncio trará, como veremos, uma dimensão nova, de mistério, de intimidade, de segredo, um tipo de fala que será modificadora.  Em um simpósio sobre Sedução, na Universidade Católica de MG, Renato Janine Ribeiro mostrou a ligação do exercício de sedução com o exercício masculino de poder em uma sociedade patriarcal falando de D. Juan, o sedutor por excelência. Mostrou que D. Juan não quer amar, talvez nem apenas possuir, ele quer conquistar. Ao dizer "eu conquistei esta mulher" ele exibe o caráter da sedução como poder, conquista, que se dá em três etapas:  primeiro, o momento da "caça", em que ele leva a mulher para um lugar privado onde se dá, se não a posse, pelo menos a sedução; segundo, o momento em que ele  desperta, obtém, conquista  o desejo da mulher, que é o que mais lhe importa; e por fim, 'o momento mais forte', em que ele procura seduzir o próprio social, ou seja, contar sua conquista, fazer, dos possíveis  ouvintes, seu público, sua platéia. Há um divertido conto de Esdras do Nascimento sobre "um desses coronéis do interior que vêm se divertir na capital e acham ótimo trepar com uma mulher que aparece em revista", para ter algo a contar em sua volta...

A concepção hierarquizante, vertical, autoritária (superior/inferior, nobreza/povo, adulto/criança, patrão/empregado, homem/mulher), de início  proibitiva e repressora, vai ser o eixo mesmo de um sistema que se estrutura como excludente, marginalizador, discriminador, em que o normal é estabelecido por aceitação da norma estabelecida e demarca o campo fora do qual se situa o que deve ser evitado, discriminado, marginalizado. Marginais (como as palavras são significativas!) são as camadas da população que se quer colocar à margem, demarcando a fronteira delimitadora que diz: "eles não são iguais a nós".
As conseqüências de tal visão e forma de ação não tardam em mostrar seus danos. Esse mecanismo de exclusão que atravessa, subterrânea ou abertamente, a construção de toda a civilização branca, ocidental, cristã e patriarcal exclui, discrimina, aparta, marginaliza ou mesmo se impõe pela força, vitimiza, domina e mata o "selvagem" dos Novos Mundos descobertos ou de continentes inteiros, os "gentios" de um Oriente ou de uma África, diversos na cultura e na cor, os "bárbaros" ( bárbaro significa aquele que gagueja) que têm uma palavra outra, diferente e não se expressam ou agem em nome do Pai. Exclusão que ainda marca as lutas étnicas, raciais ou culturais do Oriente Médio, da África do Sul, da Bósnia e põe em choque duas lógicas, com domínio da vertente política, do coletivo e dos partidos, ou da economia classista; que dá origem a todos os conflitos de uma civilização em que religiões apregoam um 'amor ao próximo', mas nele não vêem o humano, apenas o semelhante ou igual dentro dos limites de raça, cultura, classe, ou mesmo gênero. Fazendo-nos entender o gesto do califa que mandou queimar os milhares de volumes da preciosa Biblioteca de Alexandria dizendo que, se todos aqueles livros dizem o mesmo que o Corão, são supérfluos, não precisam existir, e se dizem algo diverso ou contrário, não são verdadeiros e, portanto, devem ser queimados. Poderia ser considerado o antecessor, orientador e guia de todas as formas de censura e ditaduras, e de todas as tiranias implantadas e mantidas ao longo dos tempos, e ainda com presença e força indiscutíveis em pleno século XX ( Hitler, Mussolini, Franco, Mao, Pinochet, Pol Pot...).
Ou que leva ainda a distorções, como a de induzir as mulheres a usar pseudônimos masculinos. De que o exemplo mais famoso é o de George Sand. Mas que aqui no Brasil também aconteceu: tese de doutorado de Valéria Souto Maior (SC), fruto de cuidadosa pesquisa, comprova que,  das  52 escritoras mulheres brasileiras que tiveram suas obras publicadas ao longo do século XIX, apenas  3 (três) não usaram pseudônimos masculinos - sem os quais não teriam sido aceitas pelos editores. E uma das três é Júlia Lopes de Almeida que ( ao que dizem as más línguas...) só "ousou" manter o próprio nome porque o marido, Filinto de Almeida, intelectual de renome na época, lhe abriu portas. (O engraçado é que hoje o nome dela é muito mais conhecido que o dele...)





As linhas dessa trajetória nos permitem, portanto, afirmar que o silêncio não foi apenas feminino. E entender porque é com satisfação que constatamos o imenso salto qualitativo que viria a ser dado por todos esses excluídos e marginalizados.  A partir das décadas de 60 / 70 os diferentes movimentos - de mulheres, de negros, de comunidades, de descolonização - surgem com força expressiva em diferentes partes do mundo. Denunciando a opressão, a repressão como não-naturais, mas construídas social e culturalmente. Rompendo o silêncio por elas imposto. Enfatizando a necessidade de mudanças e transformações não só de estruturas, mas de mentalidades. Assinalando , a importância de conhecer, analisar e modificar o processo que implantou essas relações de poder e as formas de violência pelas quais ele se impôs ou se mantém. Formas entre as quais está o silêncio. Se é a fala que define, distingue e identifica o ser humano, silenciá-lo, seja a que pretexto for, é animalizá-lo, brutalizá-lo, coisificá-lo. E os que sofrem essa repressão o sabem por viver ou ter vivido isso. Pois se o ser humano é “o ser da linguagem” (Heidegger), uma das violências cometidas por essa civilização fundada no domínio e na força foi silenciá-lo ao longo de 2.500 anos. E silenciar alguém, repetimos, é uma violência – como bem sabem as tiranias quando amordaçam pela Censura todas as bocas, reduzindo populações inteiras ao silêncio. Reduzindo, sim: pois obrigar ao silêncio, seja a que pretexto for, é uma violência que desumaniza, transforma o ser humano em objeto, que se busca tornar manipulável ou massificado. Até mesmo o animal tem direito ao grito, a expressar-se, mesmo que não pela palavra, marca humana criadora e desveladora. Resgatar o direito à fala, o direito de expressão é, portanto, resgatar algo que nos define como humanos. Direito a ser estendido a todos os que foram, ou ainda são, silenciados, excluídos e marginalizados nesta sociedade classista e racista em que vivemos.

Para nós, que vivemos no Brasil, há, portanto, algo mais, que não pode ser passado em branco: os 21 anos da ditadura militar (1964-1985), em que o silencio não foi apenas imposição de uma Censura amordaçando todas as bocas. Se, nos interrogatórios, o silêncio dos interrogados foi, por vezes, uma forma de resistência, também o silêncio foi não raro, um dos instrumentos usados para "destruir um homem sem precisar matá-lo" - expressão terrível então ouvida - e cujo peso e força busquei fazer ver na fala dada a um personagem da peça "Represa", escrita na época, dando voz ao que tinha ouvido de alguém que esteve preso pela ditadura :

"Vocês não sabem... Não sabem o que é ficar meses e meses em silêncio... Emparedado, trancado dentro de paredes estreitas e nuas... ( foco de luz vai circunscrevendo sua figura e música, em sons distorcidos, sublinhando momentos de sua fala) fechado no silêncio. Era noite ou era dia? Perdi a noção das horas, do tempo, da voz humana... Só aquela luz baça, dia e noite, noite e dia... E quando vinha gente... eram eles que vinham! Eu ficava esperando, esperando... Não sabia quando iam vir. Só sabia que tinha que estar preparado, que tinha que ter forças, forças para agüentar, pra não dizer nomes, fatos, coisas que pudessem comprometer alguém! Eu ficava esperando. Silêncio. Nada. Mas eu sabia que eles iam vir! Aquelas paredes me fechando... aquele silêncio... me alucinavam. E eu só tinha uma idéia na cabeça: não falar, não falar, não falar! E aí eles vinham... Começavam aos poucos, iam aumentando, aumentando, pancada no estômago, nas costas, no corpo, golpes, gritos, choques... Choque elétrico, meu corpo sacudia... a gente estala, não agüenta, urra de dor sem querer, a cabeça gira, gira, uma só idéia, força pra guardar uma só idéia, não falar, não falar ! (esgotado) não falar..."

Na mesma época da ditadura, o silencio foi também vivido de outra forma: o silêncio do exílio e da clandestinidade, decorrentes da militância política. Que me levaria a ficar sozinha, isolada, em um lugar ermo, uma casa sitiada de matas, e estrelas, de nuvens, de espaços, sem eletricidade, sem qualquer forma de comunicação, convivendo apenas comigo, alimentada apenas de mim mesma. Silêncio de introspecção, de interiorização, da meditação. Silêncio que um trecho de conto então escrito registraria:

       "É em silencio que examina a paisagem. Olhando de cima, contemplando do alto, pode separar as partes, ver as diferenças, consegue rever todo o panorama, e perceber onde é possível reencontrar seus pares, e onde é preciso cortar aparas, ou o que é preciso apartar para dar, a todos, estrada aberta e chão firme para andar.
       É em silêncio que ri dos homens-rãs, parados à beira de seus charcos, sua alma revirada em lama, a coaxar alto e estufar o peito para fazer crer aos tolos que são bois.
       É em silêncio que se volta para dentro de si, mergulha as mãos e seu rosto, o corpo inteiro, na água de seu poço, para buscar descobrir em seu fundo mais fundo a fonte mesma da palavra – aquela palavra que um dia, pela primeira vez articulada, fez o ser humano perguntar. E ao perguntar, e perguntar-se, ver sua imagem no espelho, reflexo que provoca sua reflexão e o faz descobrir nos olhos do outro sua alegria de serem iguais e diferentes, singulares e plurais. Não mais con-fusão, indiferença e conformidade primeiras, mas fusão com, o in-terno derramando-se em ternura que faz as mãos se encontrarem para a união e a ação. Na ausência de respostas escutando atentamente as perguntas.
        É em silêncio que fica ouvindo o silêncio, a linguagem mais funda, introduzida em
sinais, sonda dos espaços, descida vertical até a origem do poço, da fonte e da água.
       Em silêncio, sem pressa, embora ainda sem pouso. É no silêncio que vão se fechando em noite os crepúsculos. É no silêncio que seu fogo e cinza se faz incandescência de uma nova aurora, sempre tão esperada e anunciada no canto dos galos.

       Pensei que fosse ser muito difícil ficar aqui sozinha. Não foi. Fui aprendendo a conviver comigo mesma. A me voltar para dentro. E a ouvir esse silêncio. Algo misterioso, desconhecido, oculto, inexplicado ou inexplicável. Que traz algo mais, que inquieta, levanta perguntas, leva a buscar mais fundo e mais longe. Que leva a dizer a mim mesma:  estou viva. Viva. E como ser humano que sinto e sei que estou viva. Mas o que é, exatamente, estar viva? O que é isso que chamamos de vida? E que sabemos não ser apenas um coração por algum tempo batendo dentro de um corpo? "

O silencio. Múltiplo. Multifacetado. Podendo ser forma de agressão, capaz de isolar, confinar, enlouquecer, alucinar um ser humano, de "destruí-lo sem precisar matá-lo", como aprenderam em Fort Bragg os detentores da ditadura militar. Ou ser forma de resistência, como o foi no caso de tantos interrogados cuja única resposta foi o silêncio. Ou ser momento de introspecção, de meditação e mergulho interior, a pausa e pouso necessários ao caminhar.

A fala feminina, que começa a proliferar nesta segunda metade do século XX, vai ser rica e significativa, e não se limita à luta pelos direitos civis ou pela progressiva inserção da mulher na vida pública, ou pela redefinição de papéis sociais, que vão permitir à mulher deixar de ser e sentir-se objeto e passar a ser, ver, sentir-se, e expressar-se como sujeito, e comprová-lo em sua ação e em sua fala.  Christa Wolf, em seu "Cassandra", pergunta em determinado momento: " Em que em que medida existe realmente uma fala feminina?" E ela própria responde: "Na medida em que as mulheres, por motivos históricos e biológicos, vivenciaram uma realidade  diferente da dos homens.  Na medida em que vivenciam diferentemente dos homens a realidade e por isso diferentemente a expressam. Na medida em que não fazem parte dos dominantes,  e sim dos dominados da sociedade, que durante séculos existiram como objetos dos objetos, como objetos de segundo grau, ou muitas vezes objetos de homens que também são objetos ou seja, cuja situação social as fez, ou faz, membros de uma segunda cultura. Na medida em que abandonam a tentativa de se integrar no irracional sistema dominante e buscam sua autonomia, em sua vida, ou em sua fala e escrita. Encontrando-se assim com homens que aí buscam também autonomia. Pessoas, Estados e sistemas autônomos atuando reciprocamente uns sobre os outros como estímulos, não necessitando se confrontar ou lutar entre si, como é o caso daqueles cuja insegurança ou imaturidade intrínsecas continuam exigindo afastamento e dominação. E se ensaiássemos, por uma vez que fosse, substituir as grandes figuras masculinas da literatura universal por mulheres? Aquiles, Hércules, Ulisses, Édipo, Agamenon, Jesus, Rei Lear, Fausto, Julien Sorel e Wilhem Meister? O radar da literatura não as poderia detectar. A isso chamam de "realismo". E a existência das mulheres até hoje foi irrealista".

A diferença. A noção da diferença trazida pela presença e a voz femininas tem sido seguidamente sublinhada.  Essa fala feminina que, como acima apontamos, traz dimensões novas, registrando não só fatos e idéias que descrevem/narram/comentam sua nova presença no espaço maior do mundo atual como os confrontos e conflitos, rupturas e inovações que para tal e com tal se deram, mudando as relações interpessoais e sociais.  Trazendo uma maneira outra de ver, pensar e sentir o próprio cotidiano, antes julgado menor, e de atentar para o antes oculto, invisível ou impensado dentro do próprio real.  Ou aprofundando dimensões esquecidas dentro do ser humano, ligadas à intimidade, à introspecção, ao segredo, ao mistério. Ou interligando o individual ao coletivo, na História e nas vivências, captando o plural dentro da singularidade.
O que As Ondas, o conhecido romance de Virginia Woolf, poderia ilustrar ou exemplificar. O silêncio, que foi aqui o norte de nossa bússola, é o elemento central da consciência que se esboça a partir dos diferentes personagens que, em seus solilóquios, nos fazem compartilhar do que sentem, pensam e fazem: Rhoda se refugia em sua buscada solidão, fruto de sua insegurança e ansiedade diante do convívio humano e seus possíveis compromissos. Jinny, pelo contrário, é uma mulher que se compraz com a vida social a que se entrega e se liga apenas através de seu belo corpo. Susan vai vivenciar as emoções e incertezas da maternidade mudando de ambiente, fugindo da cidade para o campo. Bernard, escritor, contista, está sempre em busca da frase ou palavra mais sugestiva e adequada a dar expressão ao que deseja. Louis, em sua qualidade de forasteiro, está permanentemente em busca de aceitação e sucesso. Neville tenta encontrar o amor em ansiosa e permanente busca de algo transcendental na série de homens a que vai seguidamente se ligando.   

Mas, buscando ou trabalhando uma nova linguagem, em que os pontos se tornam complementares, a comunicação é também busca de um ser-em-comum. Não por acaso um Projeto de que participo, com sede na Itália e desenvolvendo-se em 12 países (Europa e América Latina), se denomina La Scrittura della Differenza / La Escritura de las Diferencias.  O Concurso de Dramaturgia Feminina, aqui realizado em 2015, inscreveu 104 mulheres de 14 estados brasileiros que bem ilustram essa nova fala.  Como assinalamos em ensaio escrito sobre o conjunto de obras, é grande o número de peças voltadas para a consciência de si, para um (re)conhecimento que é um (re)ver-se, analisar-se, interrogar-se sob as mais diferentes formas, dos monólogos à dramatização de experiências vividas, de encontros ou perdas que podem se aprofundar às dimensões de  uma revisão existencial que  indaga das próprias etapas da vida ou leva a interrogar  quanto ao que lhe dá sentido ou significado. Ou enfocam as relações sociais e humanas, expandidas em um mundo que tem no social um de seus seixos, e pode levar tanto à deturpação dessas mesmas relações como ao aprofundamento de suas ligações  com o político e o cultural. Ou retratam os comportamentos, atitudes e valores novos assim surgidos e espelhados. Ou vão buscar o sentido e significado dessa atuação, e, como a consciência é situada, aprofundando-a ou atualizando-a como consciência histórica, ligada às grandes transformações então vistas e vividas.
Entre estas, as relações de gênero, exemplificadas na concepção da relação homem-mulher, por séculos hierarquizante e autoritária, e ora buscando equilíbrio ou igualdade. Não uma igualdade artificial, que anule ou ignore a diferença assinalada. Uma unidade que é busca, em cada ser humano, de ser inteiro.
O que implica em nova visão do masculino e do feminino, como duas energias básicas do ser humano em seu estar-no-mundo.  Retornando ao milenar esboço do Yin e do Yang. E à imagem do círculo tendo, no alto, à direita, a seta que dele sai apontando para o exterior, com a agressividade necessária à ação a ser aí desenvolvida - protótipo de masculino; e no mesmo círculo, embaixo, a seta que termina em cruz indicando o mergulho no interior, na intimidade e introspecção, nos sentimentos e afetos mais profundos, que estiveram associados a expressão do feminino.  Com essa imagem, a reflexão e denúncia, geradora de uma nova forma de ver, de pensar e de agir: o masculino não está necessariamente associado ao homem, nem o feminino à mulher. Todo ser humano, para ser inteiro, tem de conjugar dentro de si as duas energias e utilizar cada uma a cada momento que a exija: sem essa energia masculina a mulher não conseguiria enfrentar o que hoje exige sua ação no mundo externo e ser capaz de aí afirmar sua voz e presença; sem o feminino, desdenhando seu interior, sua intimidade, sua voz, o homem estaria abafando parte fundamental do que o define como humano e que a cultura em outros tempos abafou, ao lhe dizer, desde menino que "homem não chora", ou que "o homem é um forte" e a demonstração de sentimentos "um sinal de fraqueza,  dele exigindo ser  Atlas virilizado e heróico carregando nos ombros  o peso do peso do mundo.   
Inovação, visão, e busca de equilíbrio, que dariam lugar e peso à fala inesquecível Ricardo Reis (Fernando Pessoa) :
               Para ser grande, sê inteiro: nada
               teu exagera ou exclui.
               Sê tudo em cada coisa. Põe quanto és
               no mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda
               brilha,  porque alta vive...

                                                                   x   x   x   x


                                                              O DEBATE
As perguntas levantadas se desdobrariam em considerações, digressões, exemplificações, novas idéias... Indo às vezes bem longe ou bem fundo. Como provocação ao leitor/a vamos deixá-las aqui registradas, para que busque suas próprias respostas.

- "Quem cala, consente", diz o ditado. Ou não? Qual a real significação e momento da     
     silenciosa ou da silenciada?
- Acho que o silêncio é forma de impedir não só a fala, como o ver e pensar. (Dá exemplo de romances que a proibiram de ler na adolescência e leu escondido) Haveria algo assim na atitude de impedir a expressão feminina?
- O número de mulheres que escreveram até o século XIX usando pseudônimos masculinos foi enorme e que no Brasil apenas 3 escaparam a essa norma. O que isto representou, como dado de origem, e como conseqüências?
-  Santa Catalina de Siena é de origem judaica, dos Açores. A questão é mais que      
    religiosa ou  cultural. ( Faz toda uma exposição, sem perguntas).
-   Como assumir, na classe média, que a mulher precisa (ou pode) ser bem casada sem
    que tenha obrigatoriamente de usar o sobrenome do marido?
-  A chamada "lei do silêcio" foi criada e imposta por quatro mulheres, a partir de uma    
   festa de confraternização... O que as levou a tal? Não visavam apenas à ausência de
   ruído....
- Por que a Academia Brasileira de Letras, ao longo de anos, não permitiu a entrada de
  mulheres?
- Na Grécia (eu sou grega) a mulher foi de fato silenciada. Mas tinha autoridade. Aspásia    
   foi um exemplo.  Por conveniência ou por medo?
- No matriarcado as mulheres são o esteio da família. Ou seja, os homens é que foram
   silenciados?
- Nas comunidades populares, hoje, um percentual elevado de mulheres (quase 60%) é
   arrimo de família, a provedora, a que sustenta a casa. Como explicar ou justificar isso?    
   E por que os homens continuam mandando?
- A educação, a oportunidade de estudar, não são libertárias?  Não seria um modo de
   acabar com esses estereótipos culturais estreitos que continuam atuantes?
- Qual o alcance da expressão: o silêncio é de ouro?
- A evolução do silencio ou da fala feminina do eu até o nós.  Essa etapa está
   consolidada ou apenas se esboçando e ainda vai demorar?
- Joana d'Arc, Maria Quitéria, Anita Garibaldi, a Princesa Isabel personalizam figuras que
   se tornaram históricas a partir de atitudes pessoais tomadas.  Individualismo excessivo
   ou...?
- Como e por que se diz que estamos terminando um Ciclo Yang?
- Onde já algo diverso ou novo? O que pode estar surgindo de auspicioso na sociedade
   atual?
-  Não acha que o silencio da mulher está ligado à questão dos direitos da mulher? Como
   advogada eu sinto que...
- Tanto no mito de Pandora quanto no de Adão e Eva é sempre das mulheres a culpa, ou 
     dos males humanos, ou da perda do Paraíso.  Por que?
- - O desejo de Átila, de invadir Roma, estava ligado à idéia de usufruir de algumas coisas com essa conquista.  O que a mulher conquistaria com seu silêncio?

-










Nenhum comentário: