O SILÊNCIO DAS MULHERES, AO LONGO DOS SÉCULOS
Maria Helena Kühner
Artigo resultante da palestra sobre o
tema, sugerido pela União Brasileira de Escritores. Realizada no dia 20 /9, na
Academia Luso-Brasileira de Letras, provocaria animado e participativo debate,
por 2 hs. e meia, confirmando o interesse que esse tema suscita.
Desde o início
dos tempos a Mulher se viu associada à Natureza e à Terra, como provam os mitos
mais antigos. Filhos do Caos, Urano e Gaia (o Céu e a Terra), geram os Titãs,
os Cíclopes, e os Hecatônquiros, três Gigantes de 50 cabeças e 100 braços. Mas Urano,
temendo ser destronado pelos filhos, os enterra nas profundezas do mundo
subterrâneo. E Gaia, indignada, pede vingança. O Titã Cronos, seu filho mais
novo, a atende: castra o pai (separando o Céu da Terra) e assume o governo do mundo. Casa-se
com sua irmã Réa ( para os romanos,
Cibele ), portadora e doadora da fertilidade que vai propiciar a agricultura,
necessária à sobrevivência humana, e torna-se a Grande Mãe dos homens. Mas
Cronos, com o mesmo temor do pai, devora e engole os filhos que nascem. O que
leva Réa a dar-lhe lhe uma pedra para engolir, conseguindo salvar um, Zeus ( Júpiter,
para os romanos ) que, escondido em uma caverna e criado por pastores e
agricultores, virá a trazer uma nova ordem, tornando-se o Pai dos deuses e dos homens.
Mas os mitos
falam também de Pandora. Se Prometeu,"o que pre-vê", rouba dos deuses
o fogo ( associado à sabedoria e à capacidade de, pela previsão, evoluir ) e o
traz à humanidade, seu irmão gêmeo, Epimeteu, é "o que só vê o acontecido". Esquecendo os conselhos do irmão Prometeu, de
jamais aceitar um presente de Zeus, casa-se com Pandora, a 1ª mulher, por ele
enviada. A quem, Zeus no casamento, dá uma
caixa, dizendo-lhe que nunca a abra. Mas, levada pela curiosidade, Pandora
desobedece, abre a caixa e dela saem todos os males que irão afligir a humanidade
(em outra versão, todos os bens, que voltam para morada dos deuses e são assim
perdidos pelos homens). Só fica no fundo da caixa a Esperança, em sua permanente
Espera.
Na linguagem
dos mitos já surgem os caminhos, marcos e marcas que vão traçando a trajetória
humana e definindo sucessivas idades ou gerações: a idade de ouro, em que Gaia propiciava fartas colheitas e os
homens conviviam em harmonia, sem cansaço, doenças ou dores. Mas a idade se
encerraria pelos terríveis erros de Cronos. Surge a idade de prata, na qual os deuses criam outra raça de homens,
incapazes e tolos, alimentados por suas mães em interminável adolescência, sem noção
de bem e mal, vivendo do que tomavam pela força e matando-se uns os outros. Não
ofereciam aos deuses sacrifícios (sacri-ficar
= tornar sagrado) e Zeus, ofendido por essa arrogância, elimina a todos.
Passam à idade do bronze, de
guerreiros que, com as armas por eles próprios criadas, não mais cultivam a
terra, vivem da caça e da coleta e, orgulhosos, tentam tomar o Olimpo, a morada
dos deuses que, irados, os exterminam. A
quarta raça ou geração é a que surgiria com Hércules, Orfeu, Jasão, Aquiles,
Agamenon e demais heróis que, com suas ações, iriam trazer a essa geração o título
de Idade Heróica. Convivendo com os
deuses, ou mesmo filhos de algum deus, eram por eles protegidos. E neste
período surgem importantes cidades, como Atenas, Esparta, Creta, Micenas, Corinto. Mas essa geração pereceria nas
lutas fratricidas nas sete portas de Tebas ou nas que se travaram por dez anos
em Tróia. A quinta geração já não seria mais criada por Zeus, nem nasceria no
seio da Terra. A idade mítica se fecha com a geração do ferro, cuja raça nasce do homem e da primeira mulher,
Pandora. Sobre essa quinta raça cairão todos os males da caixa aberta por
Pandora: dor e doença, miséria, inveja, rudeza. Presa ao fundo da caixa, Espera/Esperança
não fazem parte da herança dessa raça de humanos. Vivem por viver. Vagando a
esmo no deserto ou na imensa floresta. Apenas caminham.
Nesse
traçado se vê que o primeiro momento é o do olhar, do ad-mirar, com espanto ou encanto, para o vazio em torno. Nada ainda
pronto, tudo por des-cobrir. A própria verdade
será um des-velar, um arrancar de
véus, o encanto e espanto desse olhar provocando a palavra - termo cuja origem, parábola,
fala dessa expressão matizada em que o real e o imaginário se confundem, e faz dos mitos a primeira tentativa humana de
apreender a realidade e estruturar seu mundo, buscando o sentido oculto das
coisas, tentando entender a origem de todas as coisas criadas. E essa Natureza ambivalente, em que ora vê
deusas doadoras e protetoras, que representam a terra fecunda e as águas
fertilizantes ( Cibele, Deméter, Rea, Gê, Isis, Miriam, Maya ), ora deusas maléficas,
pressionantes, pluralizadas e
dominadoras (As Eríneas, as Parcas, as Moiras, as Hárpias), que o ameaçam com o
extermínio ou a involução em seu corpo de água e terra.
Natureza cifrada,
que desafia o homem: "decifra-me ou te devoro". Desafio a que Édipo, ainda de pés atados ( é o que significa
seu nome ), unido à Natureza-Mãe vai dar resposta ao se confrontar com
essa Esfinge enigmática e voraz, que lhe pergunta: "Qual o animal que de
manhã tem quatro pernas, de dia, duas e ao anoitecer, três? " E a resposta
traz a imagem do decifrador vitorioso: "O homem". A Esfinge se
precipita do alto dos rochedos e Édipo, unindo-se a Jocasta, sua mãe, após matar
o pai, Laio ( pois uma nova ordem pressupõe sempre a ultrapassagem da anterior)
caminha para a cidade, onde terá inicio sua história.
No principio
o Verbo. O Homem, em silêncio, não é ainda
homem, é apenas um ser vivo, como os demais. Só quando experimenta e descobre a fala, que o define e distingue, é que se
torna humano. Mas a fala não é apenas algo mais: a fala é o anseio
de falar o Sonho, o impulso de rebelar-se contra a herança de Pandora, de vir a
fazer, do Sonho, pro-jeto capaz de lançar adiante. Porque no Sonho o homem pode
ver-se livre de Pandora e seus males, no sonho o homem pode ultrapassar a
submissão, e fazer, da Espera, Esperança. Ao falar o sonho o homem se vê em
tensão entre o submeter-se e o rebelar-se. O rebelar-se do Sonho lhe acena com
a promessa de recapturar sua autoctonia, a completude, que vai exilar Pandora, e,
com ela, a falta. Descobre a força do Sonho e a força da Fala. E descobre que, juntos,
esses dois poderosos aliados lhe permitem derrotar Pandora. A unidade primordial,
a plenitude intrínseca à autoctonia, havia sido destruída por Pandora. Agora
reinava a falta. Mas o homem descobre que o Sonho e a Fala, juntos, amalgamados,
têm o poder de desenterrar as ruínas do reino que Pandora destruiu. E nessas
ruínas ele reencontra a beleza do perdido. E busca reconstruir as ruínas. Para nelas
poder morar. Descobrindo a força e o poder da fala, o homem irá falar. Com a
ajuda de Mnemósine, que impede o esquecimento recolhendo o que seu irmão Cronos
vai deixando pelos caminhos, vai ultrapassar os balbucios de uma sociedade
ainda extremamente dependente da natureza-mãe, e vai falar, reconstruir, em seus mitos e lendas, a própria história,
e o que ela diz da vida, da morte, de
suas vidas e suas mortes, de seus amores, suas dores, seus caminhos. Caminhos
que o levarão à cidade e, com ela, a uma nova ordem que a cena teatral grega já
ilustra com suas duas arquibancadas em semi-circulo uma diante da outra, deuses
e homens frente à frente e, ao centro, o ator/intérprete, Prometeu que, mesmo
amarrado à rocha, com a águia lhe roendo o fígado que se recompõe seguidamente,
afronta Zeus, até ser libertado por um herói humano, Héracles ( Hércules, para
os latinos).
Na polis grega nascente a tripartição do poder social: sacerdotes, guerreiros,
produtores (pastores, agricultores). Na Ágora, lugar de discussões
e decisões, só cidadãos. Mulheres e escravos sem direito à cidadania. Na
divisão de papéis sociais, para estabelecer e manter a ordem desejada, cabe ao homem o espaço público, e à mulher o
espaço privado, onde exercerá seu papel de esposa e mãe.
Onde a voz, a subjetividade, o lugar
da fala feminina nessa nova ordem social, que assim se afirma como patriarcal, masculina?
Sobredeterminada
pelo elemento natural, que os mitos assinalam, pela tecnologia agrícola e por
seu lugar social, ela não vai ter lugar próprio de manifestação e expressão. Se
a nova ordem se estabelece em nome do Pai,
a subjetividade feminina vai ser interpretada, isto é, falada por normas e códigos estabelecidos pelo homem.
O que não
significa ausência. Mas poucos nomes femininos aparecem. Há mulheres, como Safo de Lesbos ( Séc. VII e VI A.C.) ,
poetisa e educadora, considerada a criadora da poesia lírica (tal como Homero o
foi da épica). Sua obra seria posteriormente reunida por estudantes de
Alexandria em 10 livros de poesia. Mas é com ironia crítica que é lembrada nos
adjetivos a ela referentes ainda hoje: "safada" e "lésbica"
não são me geral ditos em tom elogioso... Aspásia
de Mileto ( Séc. 470 a 410 A.C.) foi do círculo político de Atenas, sofista
competente e assessora de Péricles. Mas é como tal que seu nome fica registrado
(ratificando o senso comum quando ainda hoje diz que "atrás de todo grande
homem existe sempre uma grande mulher"...)
Diotima da Mantineia ( Séc. V
A.C.) é citada como sábia no Banquete
de Platão, que a ela atribui a melhor teorização sobre o que é o Amor. Mas há quem
diga que ela sequer existiu, é personagem por ele criada. Tal como o são as inúmeras
e famosas personagens femininas - Antígona, Electra, Helena, Fedra, Penélope, Cassandra
- sempre faladas por, descritas e narradas
pela fala e interpretação masculinas.
Que imagem ou modelo de mulher nelas surge? Poderíamos lembrar a fala de Andrômaca
em "As Troianas", a peça de Eurípedes que canta/conta o destino das
mulheres que, após o estratagema do cavalo de Tróia, viram sua cidade tomada,
seus guerreiros mortos ou assassinados e elas próprias se vendo levadas como
amantes ou escravas dos vencedores. É de
Andrômaca (cujo nome em grego significa "a que luta como homem"), viúva
de Heitor, que se tornará mulher do filho de Aquiles, a fala em que diz:
Todos os
bens imagináveis que dão valor à mulher
eu me
empenhava em praticar no lar de Heitor.
De inicio,
há lugares que uma esposa,
embora procedendo
bem, só por freqüentar
merece a
acusação de não se dedicar à casa.
Longe de
procurar lugares desse tipo,
eu ficava no
lar e tinha mil cuidados
para impedir
que transpusesse suas portas
a vil maledicência
própria das mulheres.
[.......] Uma
boca silenciosa, e um rosto sempre sereno
eis o que eu
oferecia a meu esposo."
A ótica
masculina é evidente, não só nos valores, espaço, comportamento e atitudes que atribui ( ou sugere e aconselha) ao feminino,
como até mesmo nos termos e expressões usados:
para evitar "a vil
maledicência própria das mulheres"...
O esquema de
valores esboçado resume o que cabia à mulher: manter a passividade, a submissão, a repressão, a serenidade, o silêncio.
O silêncio. Silenciadas, não
silenciosas. E apenas faladas por.
Mesmo quando
sob ótica outra, que poderia ser então considerada "feminina", por falar
em nome das "leis naturais" ( morte e vida, o afeto, o direito de escolha
e de expressão, a justiça dos deuses, ou seja, natural ), a transgressão do modelo dado tem um preço
que a peça "Antígona" de Sófocles,
vai fazer ver.
Antígona era
filha do Rei Édipo, de Tebas, nascida de sua união com a mãe, Jocasta. Expulso
do reino e perseguido pelas Fúrias, Édipo se exila. O poder devendo então passar
a seus filhos, Etéocle e Polinice. Mas,
ao final de seu reinado, Eteócle recusa passar o poder ao irmão, gerando uma luta
fratricida em que ambos morrem. Creonte, irmão de Jocasta, assume o trono e,
sem dar ouvidos ao adivinho Tirésias, que o adverte das possíveis conseqüências
de seu ato, decreta que Etéocle seja enterrado com honras e corpo de Polinice
seja deixado sem sepultura - o que, segundo as crenças gregas, o deixaria
vagando sem rumo por toda a eternidade. E Antígona, afrontando o édito real,
sepulta o irmão.
As razões de
seu comportamento e atitude ficam evidentes em falas de seu diálogo e confronto
com Creonte, seu Rei e tio:
Creonte - Me
diga em poucas palavras: sabias que um decreto meu proibia o que
fizeste?
Antígona-
Não poderia ignorar: era público.
Creonte - E
te atreveste a desobedecer a minha lei?
Antígona -
Sim, porque não foi Zeus que a promulgou.
nem a Justiça, companheira dos deuses
subterrâneos,
que a ditou aos homens.
Não creio que teus decretos tenham
tal poder
que permitam a um mortal violar
leis divinas
leis que não estão escritas, mas
são inevitáveis.
[....... ]
Sei que hei de morrer - seria
inevitável.
mesmo sem teu édito. E morro antes
do tempo [.....]
Mas não me assusta a morte que me
espera.[......]
Se te pareço insensata por agir
como o fiz
é como se me acusasse de insensatez
o maior de todos os insensatos
[.......]
Creonte-.[........] Sei de potros indóceis
que são contidos por um freio pequenino.
O orgulho
não cai bem a quem depende da
vontade alheia.
[......]
Antígona - Todos
os que me ouvem ousariam me aprovar
se o medo não lhes fechasse a boca."
E o Coro comenta:
Esta sabia perfeitamente o que fazia
ao transgredir a lei apregoada.
E
agora, pela segunda vez, ufana-se do que fez e
e se mostra insolente. Dos dois seria ela o homem e não ele
se a deixasse vencê-lo impunemente "
E, na tragédia,
Antígona é realmente castigada, condenada a morrer emparedada dentro de uma rocha. E o comentário final do
Coro mostra a hierarquização de papéis sociais, já então vigente, e que iria
perdurar por séculos.
Cassandra, também
personagem famosa, pagará o preço de outra forma: recebe de Apolo o dom da profecia,
que, ao recusar a seguir o coito com ele, será acompanhado de uma maldição: por
mais válido e importante que seja o que diga, ninguém lhe dará crédito, e para
seu desespero, verá os males por acontecer ( ex: a guerra de Tróia ) e não lhe
darão ouvidos.
A trajetória
humana irá assinalar os marcos e marcas do poder,
domínio e controle masculinos ao longo dos séculos, estendendo os territórios
à amplitude de impérios, a ação se desdobrando progressivamente com a expansão
comercial que levaria descoberta e ao desenho de um Mundo Novo, as invenções
que culminariam com a revolução industrial e abririam às novas tecnologias do
futuro.
Mas quantos já
ouviram falar de uma Hildegarde de
Bingen, cuja vasta obra, reunindo os conhecimentos até então existentes ligados
à biologia, à botânica, à astronomia e à medicina, ficou preservada apenas por ser
abadessa de um mosteiro em uma época em que a Igreja tinha inegável poder? Tal como sucedeu a Heloísa de Paráclito (Séc.XII
) cujo tio foi membro influente do
Clero e lhe propiciou formação vasta e erudita, dada pelo filósofo Abelardo,
seu professor e amante, com quem teria uma relação amorosa e, dela, um filho. O que leva à castração de Abelardo pelo tio, e
o leva a tornar-se monge e fundador de uma comunidade, e Heloísa a ser a abadessa
do convento de Argenteuil. Mas a dupla Abelardo e Heloísa ficaria muito mais
conhecida apenas por essa relação amorosa... Ou sabem quem foi Catalina de Siena (Séc. XIV), que liderou toda uma comunidade de
homens e mulheres e foi importante reformadora religiosa, de erudição
comprovada não só em obras literárias como nas 381 cartas de sua influente
correspondência, inclusive com Papas, como
Gregório XI e Urbano VI - o que levaria Paulo VI, em 1970, lhe dar o
título de Doutora da Igreja? Ou conhecem
Maria ou Miriam (Séc. I D.C.) como
fundadora da alquimia, e sabem que é por suas descobertas sobre o ponto de
ebulição da água que seu nome vem associado a um termo banal, de uso corrente,
o banho-maria?
A hierarquização
apontada manteria por séculos essa concepção autoritária e vertical na relação
homem/mulher. O historiador Michelet (1798 ) assinalaria no decurso da História
a correlação, permanente, Mulher-Natureza
e Homem‑Cultura. O Renascimento
seria caracterizado como um "Movimento Anti-Natureza", e muitos de
seus atos, cujos efeitos seriam mais tarde notórios, apontados como "des-naturados".
O próprio Michelet diz que faz parte de "uma geração cevada no
silêncio, na qual a ruptura com o passado e a tradição foi quase total......pois
a palavra de ordem era o silêncio”. Nascido
em 1795, ele precisaria resgatar do silêncio a própria história da Revolução (Francesa
), "por seu amor aos mortos e como reação à aridez da razão logicista e o
cálculo utilitarista do passado". E
os sentimentos e as emoções profundas da História foram revividas por Michelet
porque ele reviveu suas causas dentro de si. Tal como Rousseau, em suas “Confissões”,
o historiador resgata a si mesmo quando resgata o passado e busca conciliar os
acontecimentos com sua identidade pessoal.
Mas Evelyne
Berriot-Salvadore, em "Un corpos, un
destin. La femme dans la médicine de la Renaissance" ( 1993), traz um dado
para nós, hoje, provocador de espanto e de risos, registrado por Roberto
Muchembled em livro que eu traduzi, "A História do Diabo". Diz ele:
"No Renascimento, em todos os ramos do conhecimento e da vida social
operou-se uma redefinição da natureza feminina. A medicina, o direito, a
propaganda difundida nas imagens e pinturas - para limitar-nos apenas a alguns
setores - reforçaram a idéia de (grifos
nossos) uma indispensável vigilância para controlar este ser imperfeito,
profundamente perturbador. Os médicos viam na mulher uma criatura
inacabada, um macho incompleto, daí sua fragilidade e sua inconstância. Inútil,
canhestra, e lenta, desavergonhadamente insolente, mentirosa, supersticiosa e
lúbrica por natureza, segundo inúmeros autores, ela só era movida por movimentos de seu útero, do qual procediam
todas as suas doenças, sobretudo sua histeria. Mulher-útero, ela trazia ao mesmo
tempo em si o poder da vida e o poder da morte.[........] A visão da feminilidade mesclava, inextricavelmente,
as teorias eruditas, produzidas pela Teologia, a Medicina e o Direito, com os
preconceitos populares correntes. Entre
os tópicos religiosos - que representam 3/4 desse corpus, predomina a idéia do
pecado. Que, ao que dizem, a mulher pratica com o maior despudor: primeiro, o da luxúria, seguidamente mostrado,
depois a inveja, a vaidade, a preguiça, e por fim o orgulho. Este sistema de
pensamento foi produzido por homens e para seus semelhantes a fim de
preveni-los contra as armadilhas femininas, diretamente inspiradas por Satã
[.........] Essa ligação da mulher com o Diabo, ou seja, o fato de "terem
o diabo no corpo" fundamentava a superioridade masculina e explicava a sujeição
exigida das mulheres no conjunto da sociedade. Mostrando que a mulher é inferior por natureza, isto é, pela
vontade divina."
Para quem se
lembra dos seguidos momentos de "caça às bruxas" ou das
"feiticeiras" queimadas na fogueira ao longo das inquisições da
História, da Idade Média ao século XVI, ou o adjetivo "diabólica"
tantas vezes (des)qualificando a mulher, o texto citado dispensa maiores
comentários, pois o que é aí dito fala por si. Como dispensa comentário o que
diz o referido historiador Michelet em outra obra sua "A Feiticeira":
"É certo e evidente que não havia bruxas, mas as terríveis conseqüências
da crença em bruxas foram as mesmas que se verificariam se elas tivesse tivessem
existido. " Acrescenta: "É impossível falar sobre este assunto sem
que a pena grite de indignação." E faz toda uma análise da condição
feminina na Cristandade medieval, e em especial a daquelas que eram chamadas de
bruxas ou feiticeiras, para em seguida
serem encerradas em conventos, enterradas em claustros, ou queimadas vivas nas
fogueiras. Mostrando que, por monstruosa perversão de idéias, a Idade Média via
a carne como "impura", o corpo feminino como um "convite ao
pecado", e a mulher por tal "associada ao diabo", como vimos. Esse
anátema lançado ao corpo é um dos itens que explicam ter aquele período passado
à História como a "era das trevas", sob o pesado jugo de monarquias
teocráticas e papados tirânicos. O que o Iluminismo, até no termo que o define,
iria posteriormente denunciar e condenar. E levaria Nietzsche a assinalar algo que
não pode ser esquecido: "não se ataca o corpo sem atacar a vida em sua
raiz."
Se de novo perguntássemos: onde, então,
a presença ou a voz feminina?
Ofélia, a famosa
personagem do Hamlet, de Shakespeare,
nos diria: "Nós sabemos o que somos, não sabemos o que podemos ser." A idéia de poder ( tanto o poder, substantivo, quanto o poder, verbo que diz eu posso, nós podemos (Yes, we can, foi
o lema de campanha de sua Obama à presidência...) é importante. Cabe repensar o
que diz Muniz Sodré: " O poder significa dominação através da força. Mas nenhuma
força se mantém por dispositivo de força strictu
sensu. O poder é, na verdade, um
conjunto de efeitos da força inicial. Esses efeitos são da ordem do sentido, da
ordem da palavra. Portanto todo poder é,
em seu exercício, um conjunto de signos de poder. O poder precisa sempre se justificar,
precisa sempre falar. Precisa convencer, seduzir, persuadir. Para tal existe a palavra
do poder, ou melhor, o poder da palavra. Acho que até o amor é, na verdade, da
ordem do poder das palavras. As palavras desencadeiam, as palavras fazem.
Quando eu digo "prometo fazê-la feliz" essa palavra prometo é performativa, a ação já está realizada
na palavra. Não precisa ser falso ou verdadeiro. Aí já está dada uma ação - eu prometo.
Há uma dimensão de palavras em que a ação já está dada. Na forma eu te amo, eu te quero, já há uma ação,
uma carícia na própria palavra. Esse poder desencadeador atua falando.
Portanto, não é a fala do poder, mas o
poder da fala. Essa a diferença."
A sedução,
tradicionalmente atribuída à mulher, é ,
na realidade um exercício de poder, que se dá através da fala. Cabe aqui uma
observação que não pode ser ignorada: a ideologia
da relação homem-mulher foi construída por homens, ou seja, não houve a
fala feminina, a palavra feminina. Quando a mulher começa a falar, a falar como
expressão de si mesma, sem essa preocupação de exercitar ou exercer um poder,
essa fala, silenciada por séculos, este silêncio trará, como veremos, uma
dimensão nova, de mistério, de intimidade, de segredo, um tipo de fala que será
modificadora. Em um simpósio sobre Sedução, na Universidade Católica de MG,
Renato Janine Ribeiro mostrou a ligação do exercício de sedução com o exercício
masculino de poder em uma sociedade patriarcal falando de D. Juan, o sedutor
por excelência. Mostrou que D. Juan não quer amar, talvez nem apenas possuir,
ele quer conquistar. Ao dizer
"eu conquistei esta mulher" ele exibe o caráter da sedução como poder, conquista, que se dá em três
etapas: primeiro, o momento da
"caça", em que ele leva a mulher para um lugar privado onde se dá, se
não a posse, pelo menos a sedução; segundo, o momento em que ele desperta, obtém, conquista o desejo da mulher, que é o que mais
lhe importa; e por fim, 'o momento mais forte', em que ele procura seduzir o
próprio social, ou seja, contar sua conquista, fazer, dos possíveis ouvintes, seu público, sua platéia. Há um
divertido conto de Esdras do Nascimento sobre "um desses coronéis do
interior que vêm se divertir na capital e acham ótimo trepar com uma mulher que
aparece em revista", para ter algo a contar em sua volta...
A concepção
hierarquizante, vertical, autoritária (superior/inferior, nobreza/povo, adulto/criança,
patrão/empregado, homem/mulher), de início proibitiva e repressora, vai ser o eixo mesmo
de um sistema que se estrutura como
excludente, marginalizador, discriminador, em que o normal é estabelecido por aceitação da norma estabelecida e demarca o campo fora do qual se situa o que
deve ser evitado, discriminado, marginalizado. Marginais (como as palavras são significativas!) são as camadas da
população que se quer colocar à margem, demarcando a fronteira delimitadora que
diz: "eles não são iguais a nós".
As conseqüências
de tal visão e forma de ação não tardam em mostrar seus danos. Esse mecanismo de
exclusão que atravessa, subterrânea ou abertamente, a construção de toda a civilização branca, ocidental, cristã e
patriarcal exclui, discrimina, aparta, marginaliza ou mesmo se impõe pela
força, vitimiza, domina e mata o "selvagem" dos Novos Mundos
descobertos ou de continentes inteiros, os "gentios" de um Oriente ou
de uma África, diversos na cultura e na cor, os "bárbaros" ( bárbaro significa aquele que gagueja) que têm uma palavra outra, diferente e não se
expressam ou agem em nome do Pai. Exclusão
que ainda marca as lutas étnicas, raciais ou culturais do Oriente Médio, da África
do Sul, da Bósnia e põe em choque duas lógicas, com domínio da vertente política,
do coletivo e dos partidos, ou da economia classista; que dá origem a todos os
conflitos de uma civilização em que religiões apregoam um 'amor ao próximo', mas
nele não vêem o humano, apenas o semelhante ou igual dentro dos limites de
raça, cultura, classe, ou mesmo gênero. Fazendo-nos entender o gesto do califa
que mandou queimar os milhares de volumes da preciosa Biblioteca de Alexandria
dizendo que, se todos aqueles livros dizem o mesmo que o Corão, são supérfluos,
não precisam existir, e se dizem algo diverso ou contrário, não são verdadeiros
e, portanto, devem ser queimados. Poderia ser considerado o antecessor, orientador
e guia de todas as formas de censura e ditaduras, e de todas as tiranias implantadas e mantidas ao longo
dos tempos, e ainda com presença e força indiscutíveis em pleno século XX (
Hitler, Mussolini, Franco, Mao, Pinochet, Pol Pot...).
Ou que leva ainda a distorções,
como a de induzir as mulheres a usar pseudônimos masculinos. De que o exemplo
mais famoso é o de George Sand. Mas que aqui no Brasil também aconteceu: tese
de doutorado de Valéria Souto Maior (SC), fruto de cuidadosa pesquisa, comprova
que, das
52 escritoras mulheres brasileiras que tiveram suas obras
publicadas ao longo do século XIX, apenas
3 (três) não usaram pseudônimos masculinos - sem os quais não
teriam sido aceitas pelos editores. E uma das três é Júlia Lopes de Almeida que
( ao que dizem as más línguas...) só "ousou" manter o próprio nome porque
o marido, Filinto de Almeida, intelectual de renome na época, lhe abriu portas.
(O engraçado é que hoje o nome dela é muito mais conhecido que o dele...)
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As
linhas dessa trajetória nos permitem, portanto, afirmar que o silêncio não foi apenas feminino. E entender
porque é com satisfação que constatamos o
imenso salto qualitativo que viria a
ser dado por todos esses excluídos e marginalizados. A partir das décadas de 60 / 70 os diferentes
movimentos - de mulheres, de negros, de comunidades, de descolonização - surgem
com força expressiva em diferentes partes do mundo. Denunciando a opressão, a
repressão como não-naturais, mas construídas social e culturalmente. Rompendo o
silêncio por elas imposto. Enfatizando a necessidade de mudanças e
transformações não só de estruturas, mas de mentalidades. Assinalando , a importância
de conhecer, analisar e modificar o processo que implantou essas relações de
poder e as formas de violência pelas quais ele se impôs ou se mantém. Formas entre
as quais está o silêncio. Se é a fala
que define, distingue e identifica o ser humano, silenciá-lo, seja a que pretexto
for, é animalizá-lo, brutalizá-lo, coisificá-lo. E os que sofrem essa repressão
o sabem por viver ou ter vivido isso. Pois se o ser humano é “o ser da
linguagem” (Heidegger), uma das violências cometidas por essa civilização
fundada no domínio e na força foi silenciá-lo ao longo de 2.500 anos. E
silenciar
alguém, repetimos, é uma violência – como bem sabem as tiranias quando
amordaçam pela Censura todas as bocas, reduzindo populações inteiras ao
silêncio. Reduzindo, sim: pois obrigar ao silêncio, seja a que pretexto for, é
uma violência que desumaniza, transforma o ser humano em objeto, que se busca
tornar manipulável ou massificado. Até mesmo o animal tem direito ao grito, a
expressar-se, mesmo que não pela palavra, marca humana criadora e desveladora.
Resgatar o direito à fala, o direito de expressão é, portanto, resgatar algo
que nos define como humanos. Direito a ser estendido a todos os que foram,
ou ainda são, silenciados, excluídos e marginalizados nesta sociedade classista
e racista em que vivemos.
Para nós, que vivemos no Brasil,
há, portanto, algo mais, que não pode ser passado em branco: os 21 anos da
ditadura militar (1964-1985), em que o silencio não foi apenas imposição de uma
Censura amordaçando todas as bocas. Se, nos interrogatórios, o silêncio dos interrogados foi, por vezes,
uma forma de resistência, também o silêncio
foi não raro, um dos instrumentos usados para "destruir um homem sem
precisar matá-lo" - expressão terrível então ouvida - e cujo peso e
força busquei fazer ver na fala dada a um personagem da peça
"Represa", escrita na época, dando voz ao que tinha ouvido de alguém
que esteve preso pela ditadura :
"Vocês não sabem... Não sabem o que é ficar meses e meses em
silêncio... Emparedado, trancado dentro de paredes estreitas e nuas... ( foco
de luz vai circunscrevendo sua figura e música, em sons distorcidos,
sublinhando momentos de sua fala) fechado
no silêncio. Era noite ou era dia? Perdi a noção das horas, do tempo, da
voz humana... Só aquela luz baça, dia e noite, noite e dia... E quando vinha
gente... eram eles que vinham! Eu
ficava esperando, esperando... Não sabia quando iam vir. Só sabia que tinha que
estar preparado, que tinha que ter forças, forças para agüentar, pra não dizer
nomes, fatos, coisas que pudessem comprometer alguém! Eu ficava esperando.
Silêncio. Nada. Mas eu sabia que eles iam vir! Aquelas paredes me fechando...
aquele silêncio... me alucinavam. E eu só tinha uma idéia na cabeça: não falar,
não falar, não falar! E aí eles vinham... Começavam aos poucos, iam aumentando,
aumentando, pancada no estômago, nas costas, no corpo, golpes, gritos,
choques... Choque elétrico, meu corpo sacudia... a gente estala, não agüenta,
urra de dor sem querer, a cabeça gira, gira, uma só idéia, força pra guardar
uma só idéia, não falar, não falar
! (esgotado) não falar..."
Na mesma época da ditadura, o
silencio foi também vivido de outra forma: o
silêncio do exílio e da clandestinidade, decorrentes da militância
política. Que me levaria a ficar sozinha, isolada, em um lugar ermo, uma casa
sitiada de matas, e estrelas, de nuvens, de espaços, sem eletricidade, sem
qualquer forma de comunicação, convivendo apenas comigo, alimentada apenas de
mim mesma. Silêncio de introspecção, de interiorização, da meditação. Silêncio
que um trecho de conto então escrito registraria:
"É
em silencio que examina a paisagem. Olhando de cima, contemplando do alto, pode
separar as partes, ver as diferenças, consegue rever todo o panorama, e
perceber onde é possível reencontrar seus pares, e onde é preciso cortar
aparas, ou o que é preciso apartar para dar, a todos, estrada aberta e chão
firme para andar.
É em silêncio que ri dos homens-rãs,
parados à beira de seus charcos, sua alma revirada em lama, a coaxar alto e
estufar o peito para fazer crer aos tolos que são bois.
É em silêncio que se volta para dentro
de si, mergulha as mãos e seu rosto, o corpo inteiro, na água de seu poço, para
buscar descobrir em seu fundo
mais fundo a fonte
mesma da palavra – aquela palavra que um dia, pela primeira
vez articulada, fez o ser humano perguntar. E ao perguntar, e perguntar-se, ver
sua imagem no espelho, reflexo que provoca sua reflexão e o faz descobrir nos
olhos do outro sua alegria de serem iguais e diferentes, singulares e plurais.
Não mais con-fusão, indiferença e conformidade primeiras, mas fusão com, o
in-terno derramando-se em ternura que faz as mãos se encontrarem para a união e
a ação. Na ausência de respostas escutando atentamente as perguntas.
É
em silêncio que fica ouvindo o silêncio, a linguagem mais funda, introduzida em
sinais, sonda dos espaços,
descida vertical até a origem do poço, da fonte e da água.
Em silêncio, sem pressa, embora ainda
sem pouso. É no silêncio que vão se fechando em noite os crepúsculos. É no
silêncio que seu fogo e cinza se faz incandescência de uma nova aurora, sempre
tão esperada e anunciada no canto dos galos.
Pensei que fosse ser muito difícil ficar
aqui sozinha. Não foi. Fui aprendendo a conviver comigo mesma. A me voltar para
dentro. E a ouvir esse silêncio.
Algo misterioso, desconhecido, oculto, inexplicado ou inexplicável. Que
traz algo mais, que inquieta, levanta perguntas, leva a buscar mais fundo e
mais longe. Que leva a dizer a mim mesma: estou viva. Viva. E como ser humano que sinto
e sei que estou viva. Mas o que é, exatamente, estar viva? O que é
isso que chamamos de vida? E que sabemos não ser apenas um
coração por algum tempo batendo dentro de um corpo? "
O silencio. Múltiplo. Multifacetado.
Podendo ser forma de agressão, capaz de isolar, confinar, enlouquecer, alucinar
um ser humano, de "destruí-lo sem precisar matá-lo", como aprenderam
em Fort Bragg os detentores da ditadura militar. Ou ser forma de resistência,
como o foi no caso de tantos interrogados cuja única resposta foi o silêncio. Ou
ser momento de introspecção, de meditação e mergulho interior, a pausa e pouso
necessários ao caminhar.
A
fala feminina, que começa a proliferar nesta segunda metade do século XX, vai
ser rica e significativa, e não se limita à luta pelos direitos civis ou pela
progressiva inserção da mulher na vida pública, ou pela redefinição de papéis
sociais, que vão permitir à mulher deixar de ser e sentir-se objeto e passar a ser, ver, sentir-se, e
expressar-se como sujeito, e
comprová-lo em sua ação e em sua fala.
Christa Wolf, em seu "Cassandra", pergunta em determinado
momento: " Em que em que medida
existe realmente uma fala feminina?" E ela própria responde: "Na
medida em que as mulheres, por motivos históricos e biológicos, vivenciaram uma
realidade diferente da dos homens. Na medida em que vivenciam diferentemente dos
homens a realidade e por isso diferentemente a expressam. Na medida em que não
fazem parte dos dominantes, e sim dos
dominados da sociedade, que durante séculos existiram como objetos dos objetos,
como objetos de segundo grau, ou muitas vezes objetos de homens que também são objetos
ou seja, cuja situação social as fez, ou faz, membros de uma segunda cultura. Na
medida em que abandonam a tentativa de se integrar no irracional sistema dominante
e buscam sua autonomia, em sua vida, ou em sua fala e escrita. Encontrando-se
assim com homens que aí buscam também autonomia. Pessoas, Estados e sistemas
autônomos atuando reciprocamente uns sobre os outros como estímulos, não
necessitando se confrontar ou lutar entre si, como é o caso daqueles cuja
insegurança ou imaturidade intrínsecas continuam exigindo afastamento e
dominação. E se ensaiássemos, por uma vez que fosse, substituir as grandes
figuras masculinas da literatura universal por mulheres? Aquiles, Hércules,
Ulisses, Édipo, Agamenon, Jesus, Rei Lear, Fausto, Julien Sorel e Wilhem Meister?
O radar da literatura não as poderia detectar. A isso chamam de
"realismo". E a existência das mulheres até hoje foi irrealista".
A diferença. A noção da diferença trazida pela
presença e a voz femininas tem sido seguidamente sublinhada. Essa fala feminina que, como acima apontamos,
traz dimensões novas, registrando não só fatos e idéias que
descrevem/narram/comentam sua nova presença no espaço maior do mundo atual como
os confrontos e conflitos, rupturas e inovações que para tal e com tal se
deram, mudando as relações interpessoais e sociais. Trazendo uma maneira outra de ver, pensar e
sentir o próprio cotidiano, antes julgado menor, e de atentar para o antes
oculto, invisível ou impensado dentro do próprio real. Ou aprofundando dimensões esquecidas dentro do
ser humano, ligadas à intimidade, à introspecção, ao segredo, ao mistério. Ou
interligando o individual ao coletivo, na História e nas vivências, captando o
plural dentro da singularidade.
O que As Ondas, o conhecido romance de Virginia
Woolf, poderia ilustrar ou exemplificar. O silêncio, que foi aqui o norte de
nossa bússola, é o elemento central da consciência que se esboça a partir dos
diferentes personagens que, em seus solilóquios,
nos fazem compartilhar do que sentem, pensam e fazem: Rhoda se refugia em sua
buscada solidão, fruto de sua insegurança e ansiedade diante do convívio humano
e seus possíveis compromissos. Jinny, pelo contrário, é uma mulher que se
compraz com a vida social a que se entrega e se liga apenas através de seu belo
corpo. Susan vai vivenciar as emoções e incertezas da maternidade mudando de
ambiente, fugindo da cidade para o campo. Bernard, escritor, contista, está
sempre em busca da frase ou palavra mais sugestiva e adequada a dar expressão
ao que deseja. Louis, em sua qualidade de forasteiro, está permanentemente em
busca de aceitação e sucesso. Neville tenta encontrar o amor em ansiosa e
permanente busca de algo transcendental na série de homens a que vai
seguidamente se ligando.
Mas,
buscando ou trabalhando uma nova
linguagem, em que os pontos se tornam complementares, a comunicação é
também busca de um ser-em-comum. Não
por acaso um Projeto de que participo, com sede na Itália e desenvolvendo-se em
12 países (Europa e América Latina), se denomina La Scrittura della Differenza / La Escritura de las
Diferencias. O Concurso de Dramaturgia
Feminina, aqui realizado em 2015, inscreveu 104 mulheres de 14
estados brasileiros que bem ilustram essa nova fala. Como assinalamos em ensaio escrito sobre o
conjunto de obras, é grande o número de peças voltadas para a consciência de si,
para um (re)conhecimento que é um (re)ver-se, analisar-se, interrogar-se sob as
mais diferentes formas, dos monólogos à dramatização de experiências vividas, de
encontros ou perdas que podem se aprofundar às dimensões de uma revisão existencial que indaga das próprias etapas da vida ou leva a interrogar
quanto ao que lhe dá sentido ou
significado. Ou enfocam as relações sociais e humanas, expandidas em um mundo que
tem no social um de seus seixos, e
pode levar tanto à deturpação dessas mesmas relações como ao aprofundamento de
suas ligações com o político e o cultural.
Ou retratam os comportamentos, atitudes e valores novos assim surgidos e
espelhados. Ou vão buscar o sentido e significado dessa atuação, e, como a consciência
é situada, aprofundando-a ou atualizando-a como consciência histórica, ligada às
grandes transformações então vistas e vividas.
Entre estas, as relações de gênero, exemplificadas na
concepção da relação homem-mulher, por séculos hierarquizante e autoritária, e ora
buscando equilíbrio ou igualdade. Não uma igualdade artificial, que anule ou ignore
a diferença assinalada. Uma unidade que é busca, em cada ser humano, de ser inteiro.
O que implica em nova
visão do masculino e do feminino, como duas energias básicas do ser humano
em seu estar-no-mundo. Retornando ao
milenar esboço do Yin e do Yang. E à imagem do círculo tendo, no alto, à
direita, a seta que dele sai apontando para o
exterior, com a agressividade necessária à ação a ser aí desenvolvida -
protótipo de masculino; e no mesmo círculo, embaixo, a seta que termina em cruz
indicando o mergulho no interior, na
intimidade e introspecção, nos sentimentos e afetos mais profundos, que
estiveram associados a expressão do feminino.
Com essa imagem, a reflexão e denúncia, geradora de uma nova forma de
ver, de pensar e de agir: o masculino não
está necessariamente associado ao homem, nem o feminino à mulher. Todo ser
humano, para ser inteiro, tem de conjugar
dentro de si as duas energias e utilizar cada uma a cada momento que a exija:
sem essa energia masculina a mulher não conseguiria enfrentar o que hoje exige
sua ação no mundo externo e ser capaz de aí afirmar sua voz e presença; sem o
feminino, desdenhando seu interior, sua intimidade, sua voz, o homem estaria
abafando parte fundamental do que o define como humano e que a cultura em
outros tempos abafou, ao lhe dizer, desde menino que "homem não
chora", ou que "o homem é um forte" e a demonstração de
sentimentos "um sinal de fraqueza, dele exigindo ser Atlas virilizado e heróico carregando nos
ombros o peso do peso do mundo.
Inovação, visão, e
busca de equilíbrio, que dariam lugar e peso à fala inesquecível Ricardo Reis
(Fernando Pessoa) :
Para ser
grande, sê inteiro: nada
teu exagera ou
exclui.
Sê tudo em cada
coisa. Põe quanto és
no mínimo que
fazes. Assim em cada lago a lua toda
brilha, porque alta vive...
x x x x
O DEBATE
As perguntas
levantadas se desdobrariam em considerações, digressões, exemplificações, novas
idéias... Indo às vezes bem longe ou bem fundo. Como provocação ao leitor/a vamos deixá-las aqui registradas, para que
busque suas próprias respostas.
- "Quem cala,
consente", diz o ditado. Ou não? Qual a real significação e momento da
silenciosa ou da silenciada?
- Acho que o silêncio é forma de impedir não só a fala,
como o ver e pensar. (Dá exemplo de romances que a proibiram de ler na
adolescência e leu escondido) Haveria algo assim na atitude de impedir a
expressão feminina?
- O número de mulheres que escreveram até o século XIX
usando pseudônimos masculinos foi enorme e que no Brasil apenas 3 escaparam a
essa norma. O que isto representou, como dado de origem, e como conseqüências?
- Santa Catalina de Siena é de origem judaica, dos
Açores. A questão é mais que
religiosa ou cultural. ( Faz toda uma exposição, sem
perguntas).
- Como
assumir, na classe média, que a mulher precisa (ou pode) ser bem casada sem
que tenha obrigatoriamente de usar o sobrenome
do marido?
- A chamada "lei do silêcio" foi criada
e imposta por quatro mulheres, a partir de uma
festa de confraternização... O que as levou
a tal? Não visavam apenas à ausência de
ruído....
- Por que a Academia
Brasileira de Letras, ao longo de anos, não permitiu a entrada de
mulheres?
- Na Grécia (eu sou grega)
a mulher foi de fato silenciada. Mas tinha autoridade. Aspásia
foi um exemplo. Por conveniência ou por medo?
- No matriarcado as
mulheres são o esteio da família. Ou seja, os homens é que foram
silenciados?
- Nas comunidades
populares, hoje, um percentual elevado de mulheres (quase 60%) é
arrimo de família, a provedora, a que
sustenta a casa. Como explicar ou justificar isso?
E por que os homens continuam mandando?
- A educação, a
oportunidade de estudar, não são libertárias?
Não seria um modo de
acabar com esses estereótipos culturais estreitos
que continuam atuantes?
- Qual o alcance da
expressão: o silêncio é de ouro?
- A evolução do
silencio ou da fala feminina do eu até o nós. Essa etapa está
consolidada ou apenas se esboçando e ainda
vai demorar?
- Joana d'Arc, Maria
Quitéria, Anita Garibaldi, a Princesa Isabel personalizam figuras que
se tornaram históricas a partir de atitudes
pessoais tomadas. Individualismo
excessivo
ou...?
- Como e por que se
diz que estamos terminando um Ciclo Yang?
- Onde já algo
diverso ou novo? O que pode estar surgindo de auspicioso na sociedade
atual?
- Não acha que o silencio da mulher está ligado
à questão dos direitos da mulher? Como
advogada eu sinto que...
- Tanto no mito de
Pandora quanto no de Adão e Eva é sempre das mulheres a culpa, ou
dos males humanos, ou da perda do
Paraíso. Por que?
- - O desejo de
Átila, de invadir Roma, estava ligado à idéia de usufruir de algumas coisas com
essa conquista. O que a mulher
conquistaria com seu silêncio?
-
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