O calor de um sábado de verão e o cansaço
produzido pelo trânsito tumultuado me apontaram o chope geladinho como a
prioridade daquele final de expediente. Algo estava mudado no barzinho de
costume. Somente depois da primeira caneca, no entanto, me dei conta da
presença do novo proprietário do estabelecimento, que procurava atender com
presteza, conquanto não dissimulasse a falta de habilidade para a nova
ocupação. Era um paraibano de 25 a 30
anos, com um forte apelo clerical, embora não mostrasse muita afinidade com o
vernáculo. Tinha o tipo dos que descem a serra e tentam trazer a dita nas costas,
como diria o meu amigo Onofrório. No mais, o novo merceeiro parecia boa gente e
cuidava de fazer com a clientela um relacionamento capaz de lhe assegurar o
êxito no negócio.
Bem mais do que com duas ou três canecas de
chope, eu já estava farto daquela conversa enfadonha de um circunstante, para o
qual a única e comprometedora causa dos males nacionais é a preguiça do
operário. Puséssemos o trabalhador a aumentar a produção e não tardaria o
Brasil transformar-se no grande paraíso tropical. Eis a tese do loquaz
economista de boteco, ali instalado desde cedo, a cumprir mais um exercício de
cabotinismo.
Dirigi-me à porta para sair antes que algum
comensal resolvesse tomar-me o parecer, como é hábito dos noviços na irmandade
de adoradores de Baco, semanalmente reunidos
para celebrar a divindade pagã, cumprindo pauta que vai desde o sexo dos anjos
a anotações estatísticas sobre espinhela caída e mau olhado.
Enquanto atendia outro cliente, o paraibano
me surpreendeu com a proposta de deixar-me a pé; bastando para tanto que lhe
fosse informada a cotação do carrinho que pretendia adquirir mediante pagamento
à vista.
O inusitado da situação (em que o proponente
mais perecia criança mimada diante do brinquedo desejado) elevou, naturalmente,
o valor do veículo a patamares dignos da mais autêntica preciosidade.
O moço tinha pressa em ocupar a garagem anexa
a seu próprio negócio. Garantiu até que o detalhe de não ser ainda habilitado
era insignificante - não lhe custaria contratar um professor.
Eu tamborilava descuidosamente sobre a
cartela do último chope, quando ouvi a sentença do outro lado do balcão:
- Já sei que você não baixa o preço, tome o
cheque! Segunda-feira, quando pegar o dinheiro no banco, recebo os documentos.
Só quero agora que, por favor, me ponha o carro na garagem. Vai ou não vai
manter a palavra?
Devo dizer que a palavra empenhada há de ser mantida; pelo menos foi assim que me ensinaram os mais velhos. Refeito da surpresa, tomei a única atitude possível:
- Tá feito o negócio!
O parceiro riu, triunfante. A turma do economês, que há bem pouco já havia
excomungado o Ministro da Fazenda (então o bode expiatório número um das
mazelas nacionais) abandonou por um instante a recessão que estava discutindo e
passou a analisar a minha transação. Só um detalhe não foi levado em conta - na semana anterior o fabricante do automóvel deixara, definitivamente,
de produzir o modelo.
Fui embora com o cheque, levando também a
grata satisfação de haver contribuído para o estado de graça em que deixei o
mais novo habitante do quarteirão. O sorriso largo ostentado pelo bar-man, agora ocupante da garagem nas condições desejadas, era alguma coisa
indescritível.
No dia seguinte, o sol da manhã anunciava o
mais rotineiro de todos os domingos até a
campainha me interromper a leitura do jornal. Caminhei ao portão, onde um
molecote me aguardava e foi dizendo:
- Seu Severino mandou saber onde é o
esgoto.
- Que esgoto?
- O da água,
ora!...
Convidei o mensageiro a me acompanhar e
dobrei a esquina buscando entender o que estava acontecendo.
Mestre Severino, que me comprara o carro no
dia anterior, havia tirado todos os bancos do Maverick. Estava a esfregar-lhe o
soalho com o auxílio de uma vassoura, bastante água e sabão em pó. A espuma já
quase chegava a cobrir o painel.
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